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Desastre ambiental de Mariana

PLURALE EM REVISTA, EDIÇÃO 51/ Estudo de caso: a tragédia de Mariana e o impacto para o setor de mineração e o mercado de capitais

Por LuiZ Fernando Bello, Colunista de Plurale

Os rios, especialmente os grandes rios- como Tigre, Eufrates, Nilo, Danúbio, Mississipi, Sena, Tâmisa, Tietê, Paraíba, Iguaçu e Doce-, sempre contribuíram com o desenvolvimento e a interiorização das atividades humanas. Infelizmente, a humanidade tem sido cruel com quem lhe fornece o sustento, descarregando seus dejetos em quem propiciou seu próprio desenvolvimento e, muitas vezes, inviabilizando a continuidade de seu uso-fruto. Os portugueses descobriram ouro no Brasil no Ribeirão do Carmo, Minas Gerais, em 1636. A descoberta gerou um surto de prosperidade e possibilitou a instalação da primeira Vila da região em 1711. Foi uma cidade que nasceu rica e devidamente planejada, batizada como Mariana, homenageando Maria Ana da Áustria, Rainha Consorte de Portugal. Tudo muito nobre, todos nobres, menos os que, de fato, trabalhavam na extração do ouro e lançavam rejeitos e sobras do material utilizado diretamente no rio que garantia a nobreza de seus patrões. Cônsul da Rússia no Rio de Janeiro, o Barão de Langsdorff visitou a região de Mariana no início do século XIX e ficou estarrecido com o que viu: “Ao longo dos vales, correm pequenos riachos, turvos pela lavagem de ouro, que, aos poucos, vão se avolumando até desaguar no rio Doce”.

Saiu o ouro, veio o ferro. Há aproximadamente 30 anos, visitei Samitri (Sociedade Anônima Mineração da Trindade que pertencia à Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira) e Samarco, ciceroneando gestores de fundos de ações norte-americanos que começavam a se aproximar do Brasil. O teor de concentração do minério extraído pela Samitri era tão elevado que sua extração e transporte até os trens da então Companhia Vale do Rio Doce podia ser feito por caminhões comuns. Mas nada é perfeito: a Vale cobrava quase metade do valor de venda do minério pelo transporte em seus trens. A Samitri e a Belgo contavam com outras jazidas minerais para explorar, mas com baixa concentração mineral. Para viabilizar sua exploração, a Samitri associou-se à BHP na década de setenta do século passado e desenvolveram um projeto revolucionário, investindo US$ 600 milhões (a preços da época), fundando a Samarco, implementando um minero-duto de 400 quilômetros e a pelotizadora (localizada estrategicamente no Porto de Ubu-ES) que recebia o minério e o transformava em pelotas com alta concentração. Demorou para deslanchar, mas obteve grande sucesso ao longo dos anos que se seguiram.

Encontrei na região o mesmo cenário descrito pelo Barão, extremamente agravado pelos 200 anos que se passaram: “Os arredores da cidade (Mariana) apresentam um quadro assustador de devastação do solo. Os campos áridos, desprovidos de todo tipo de árvores e arbustos, cobertos de montes de cascalho”. Terra arrasada que, hoje, se espalha por todo o entorno da região.

O quadro mudou: a velha Belgo-Mineira foi absorvida pelo grupo Arcelor-Mittal e, antes disso, a Vale comprou a Samitri e a Samarco, mantendo a sociedade, nesta última, com a BHP e tornando-a paritária.

A longa introdução serve para ilustrar o conceito de “irresponsabilidade organizada” que conheci no seminário “Regulação Ambiental e Prevenção de Catástrofes: o Caso Samarco/ Mariana”, organizado pelo Centro de Direito e Meio Ambiente (CDMA/FGV Direito Rio). Um dos palestrantes, o professor do Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ Henri Acselrad, demonstrou que o despejo de rejeitos tóxicos nos EUA sempre é feito nas redondezas de comunidades mais pobres e, portanto, sem grande poder de reivindicação/pressão junto ao Estado que deveria fiscalizar adequadamente ou inibir a atividade, o que é o caso da população da periferia de Mariana. Eu vou mais longe, pois creio que há interesses comuns entre empreendedores e Estado no que tange à mineração: sem muitas regras e/ou fiscalização o retorno do investimento privado é maximizado, maximizando também a arrecadação de impostos e tributos em geral.

O resultado são os acidentes como o de Mariana que transformou o Rio Doce em mar de lama, destruiu todo o patrimônio material e cultural que havia em terra antes de chegar ao rio, deixou milhões de pessoas sem abastecimento de água, está destruindo o litoral a partir de Linhares-ES e, creem alguns, poderá atingir Abrolhos, além das pessoas que matou. O Rio Doce, a bem da verdade, já era um esgoto a céu aberto, originado pelo uso abusivo de seu leito por quase 400 anos e, ademais, acidentes acontecem mesmo em atividades que são relativamente seguras e são eventos muitas vezes inevitáveis, nunca apresentando uma única causa. Em geral, refletem a combinação de diversos fatores que, em alguns casos - por serem desconhecidos - se tornam imprevisíveis. Empresas que encaram a boa governança corporativa e a sustentabilidade como valores efetivos incorporados a sua cultura interna gerenciam riscos e, como muitas ocorrências fogem do seu domínio, desenvolvem planos de contingência, visando minimizar as consequências de eventuais ocorrências negativas que podem variar desde a queda da demanda e dos preços de seus produtos, passando por acidentes naturais ou não, até mesmo a prisão de seus principais executivos. No que tange ao Estado, as autoridades licenciadoras e fiscalizadoras deveriam estar sempre atentas, evitando o descumprimento das regras e acidentes resultantes ou punindo com rigor quem não as cumprisse, especialmente no caso de acidentes.

Mas a realidade só aparece depois da lama derramada e as providências que poderiam ter evitado a tragédia somente são tomadas depois do arrombamento da barragem. Logo após o desastre, verificou-se que não havia sequer alarmes para alertar os empregados e a população vizinha, o que dispensa maiores comentários sobre a qualidade da gestão de riscos praticada pela companhia. Ademais, os relatórios de auditoria da barragem, feitos pela empresa de consultoria Voghr (em 2013!), apontavam problemas como falhas nos canos de escoamento interno de água e no sistema de drenagem de superfície. O IBAMA acusava problemas no reflorestamento. A correção das falhas reveladas pela auditoria e o cumprimento das exigências do IBAMA são condições para a mineradora manter suas operações. As falhas não foram corrigidas e a mineradora continuou operando. Também em 2013, a ANA apresentou um relatório sobre a segurança de barragens: encontrou 14.966 barragens construídas com as mais diversas finalidades, das quais somente 430 passaram por algum tipo de fiscalização. O órgão que deveria fiscalizar as barragens de mineradoras, o DNPM – Departamento Nacional de Produção Mineral, conta com 12 técnicos para fiscalizar 663 barragens de mineradoras, cuja grande maioria fica em Minas, onde estão alocados dois ou três técnicos. Erram o empreendedor e o Estado, a sociedade sofre as consequências. Só a “irresponsabilidade organizada” para explicar 400 anos de ausência de controle sobre atividades econômicas que apresentam graves riscos ambientais

No meu entendimento, a Samarco e seus controladores deveriam desde o primeiro minuto pós derramamento ter assumido a responsabilidade pelo ocorrido - fossem culpadas ou não (no direito ambiental, a responsabilidade é objetiva) e liderado todas as atividades necessárias para reduzir o impacto da tragédia ocorrida. Não foi o que se viu. A reação demorou a acontecer. O Estado apareceu bem depois. O difícil vai ser identificar as verdadeiras causas do acidente e, ainda mais complexo, será reparar os danos. Como identificar e atribuir valores a tudo que aconteceu. Como evitar os abutres que sempre aparecem nestas ocasiões. Se houver má fé, um bom advogado poderia passar 10 ou mais anos, discutindo a competência dos tribunais.

O Ministério Público de Minas Gerais - o promotor Carlos Ferreira Pinto foi um dos expositores do seminário da FGV - vem realizando um trabalho cuidadoso de apuração de danos e responsabilidades. Mas, mesmo assim, não é fácil fazer com que os recursos destinados, voluntariamente ou não, pelos responsáveis pelo acidente, para reparar os danos cumpram seus objetivos. Falam em multas e na constituição de fundos para recuperar a região do rio Doce. O dinheiro das multas ninguém sabe para onde vai. Quanto aos fundos, será necessário desenvolver regulamentação específica e escolher com muito, muito cuidado seus administradores. Enquanto isto, a Advocacia Geral da União-AGU aciona os responsáveis pleiteando indenização de R$ 20 bilhões. Qual a base concreta dos valores? A partida do conflito de competências já começou.

Enquanto no Brasil as competências judiciais são discutidas, investidores norte-americanos estão acionando diretores da Vale, pois, em seus relatórios, a empresa afirmava que mantinha adequado programa de prevenção de riscos. Agravando a situação, descobriu-se que a Vale também depositava rejeitos na barragem que se desfez.

Para encerrar, observo que a “irresponsabilidade organizada” foi praticada pelos maiores bancos, seguradoras e gestores de recursos do mundo. Empresas produtoras de automóveis esconderam falhas que mataram centenas de pessoas e desenvolveram sistemas para fraudar testes de controle de poluição. A cada malfeito descoberto, aperto na legislação e nos controles. Recentemente, o deputado federal Leonardo Quintão, relator do texto do Código de Mineração” que está em discussão no Congresso, propôs modificações no texto, entre elas tornar obrigatória a apresentação de planos de evacuação e de contingenciamento de barragens.

Outras empresas já enfrentaram sérios problemas relativos à sustentabilidade, mas mudaram de atitude, recuperaram sua imagem e asseguraram seu futuro econômico, pois os compradores de seus produtos estão cada vez mais conscientes da necessidade de manter o planeta vivo para o usufruto de seus descendentes. Fora a inexistência de em adequado plano de contingências, os danos provocados na reputação/ imagem das empresas se deve mais a falta de reação positiva e imediata, com relação ao rompimento da barragem, do que ao acidente em si, cuja causa certamente foi um conjunto de falhas que, como nos acidentes de avião, demoram meses para ser apuradas e jamais conhecemos as respostas. Minha esperança é que a dolorosa lição oferecida pelo mar de lama, sirva para evitar futuros malfeitos e que permita a completa recuperação da região do rio Doce, o que inclui o litoral de Linhares, torcendo para que a Vale permita a seu presidente realizar o que disse ser a sua missão em vida.

Finalmente, uma notícia boa: de acordo com o noticiário recente, a Samarco está tomando as providências para reparar os danos que causou, mas, infelizmente, o mar de lama está chegando cada vez mais perto do santuário ecológico de Abrolhos. De qualquer forma, sairemos no lucro se, em algumas décadas, a Vale e sua contolada conseguirem salvar o que viemos destruindo durante os últimos 400 anos.







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