Rodrigo de Almeida, Colunista de Plurale (*)
Foi a polêmica do ano – ou do mês. Como praxe nessas questões, o relatório da Oxfam sobre desigualdade global, divulgado em janeiro, acendeu a fogueira dos debates, emitiu alertas, difundiu (falsos) mitos, realimentou cizânias. Pelo modo como o estudo foi divulgado ou pelo vício das leituras jornalísticas, alguns dados se sobressaíram: a) 82% da riqueza mundial gerada em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico, enquanto absolutamente nada ficou com os 50% mais pobres ao redor do planeta; b) Cinco brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre do país; c) Houve um aumento histórico no número de bilionários em 2017.
Para quem pensa em temas como desenvolvimento sustentável, desigualdade e democracia, o estudo inspira debates relevantes – mas, neste caso, deflagrou polêmicas pelos motivos errados. A instituição tem razão ao apontar o dedo contra um sistema que assegura um estoque constante de bens baratos, aumenta extraordinariamente os lucros de empresas e de investidores bilionários e restringem milhões de pessoas à condição de exploradas. Um limite para o poder e para a riqueza concentrada nas mãos de tão poucos é algo mais do que aceitável e desejado. É necessário.
O elogio para aí. Primeiro, revelou-se um enorme equívoco emitir comparações entre os “cinco brasileiros bilionários” e o universo majoritário e dos pobres, como uma evidência da obscena desigualdade do país. Ignorou-se, por exemplo, que Jorge Paulo Lemann, Joseph Safra, Marcel Hermann Telles, Carlos Alberto Sicupira e Eduardo Saverin exigem riquezas internacionalizadas. Lemann, Telles e Sicupira (o trio 3G) até começaram a ficar ricos no Brasil, mas se tornaram bilionários como investidores na arena global. Safra é um prestigiado banqueiro com conexões em praças financeiras internacionais, como Suíça e EUA. Fez sua fortuna no exterior. Dispensável dizer algo sobre a territorialidade da fortuna de Saverin, o sócio bastardo do Facebook. Todos têm domicílio fiscal longe do Brasil.
A gravidade maior está no risco mais danoso em debates do gênero: a construção de visões de mundo binárias, um olhar simplista da desigualdade de renda e a crença num falso trade-off – debates assim terminam por sugerir, de maneira equivocada, que mais riqueza para bilionários significa menos riqueza para nós, cidadãos ordinários, estejamos cadastrados na pasta da classe média (velha ou nova), dos pobres ou dos miseráveis. Os liberais mais empedernidos dirão que é o contrário, do que convém discordar também: não necessariamente os ventos auspiciosos do mercado livre geram simultaneamente acumulação de riquezas de uns com preenchimento de desejos e necessidades de outros. Erram os radicais livres de todos os lados.
Há uma premissa equivocada de que a reprodução social das desigualdades contribui para o aprofundamento da pobreza – algo dito pela própria Oxfam. De novo, não necessariamente. Na verdade, a história econômica e as estatísticas contemporâneas confirmam o contrário: a combinação entre menor taxa de desigualdade e maiores taxas de miséria, ou o seu inverso (redução da pobreza e da miséria e elevação da desigualdade). Mesmo nos países escandinavos – historicamente os únicos a contrariar a tese acima – precisaram rever sua rede de proteção social no processo de recuperação da crise de 2008 para restabelecer o dinamismo regressivo da renda. Em termos globais, o relatório da Oxfam ignorou o fato relevantíssimo de que, pela primeira vez na história, menos de 10% da população mundial são pobres. Isto mesmo: a pobreza despencou na última década a níveis inéditos.
Dos anos 2000 até o início da década seguinte, o Brasil assistiu a uma notável redução dos índices de miséria e pobreza – sem, no entanto, reduzir na mesma medida os indicadores de desigualdade. Pobres e miseráveis viram crescer sua renda, mas ricos cresceram sua renda muito mais. A partir de 2015, infelizmente, a curva ascendente da renda dos miseráveis e pobres começou a mudar de forma. A extrema pobreza avançou de 2,5%, em 2014, para 4,9%, em 2016, segundo cálculos da ex-ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello. Retrocedemos ao patamar de dez anos antes. Falando em termos bastante simplistas: não será preferível ver milionários e bilionários em número cada vez maior, se simultaneamente conseguirmos reduzir cada vez mais o número de pobres e miseráveis?
Reconhecendo a baixa capacidade da democracia de combater a miséria sem aumentar a desigualdade, é fundamental ao Brasil ter em mente a sustentabilidade de suas escolhas do ponto de vista do desenvolvimento. Um desenvolvimento sustentável vai muito além do na riqueza e na renda. Requer o reconhecimento de que ganhos (ou redução das disparidades) de renda não significarão avanços na estratificação social da sociedade.
Exemplo: o mais famoso torneiro mecânico do ABC paulista, com formação escolar profissionalizante, receberia nos anos 2000 dez vezes mais do que recebia em 1980. Teria assim progredido na escala estatística de renda, mas continuaria a ser um torneiro mecânico de escolaridade profissionalizante na estratificação social. Seu filho, se também fosse um torneiro mecânico com escolarização profissional, obteria seu primeiro emprego com o salário que custara ao pai 20 anos de trabalho. Mas também ingressaria na mesma posição da estratificação social.
Em outras palavras: mudanças nas classes de renda, mesmo se notáveis, não equivalem a mobilidade social. Progresso no nível educacional, maior qualificação ocupacional e substituição do trabalho anterior por ocupação mais nobre são requisitos mais relevantes e precisos para identificar ganhos de longo prazo – um desenvolvimento que se mede entre sucessivas gerações e que se mantém vencidas as intermitentes oscilações nos níveis de renda.
Eis, aí sim, um debate real, capaz de ir além de polêmicas do mês e comparações midiáticas que rendem muitas manchetes, mas em nada iluminam o entendimento do que a democracia pode fazer pelo desenvolvimento e contra a desigualdade.
(*) Rodrigo de Almeida é jornalista e cientista político. Foi visiting-scholar da New School for Social Research, em Nova York, e pesquisador do Núcleo de Estudos do Empresariado, Instituições e Capitalismo do IESP/Uerj. Autor de À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff (LeYa/2016).