Por Flávio Seixas, Especial para Plurale (*)
O agravamento contínuo da crise estrutural que estamos vivendo há alguns anos recebeu recentemente um novo ator, o vírus COVID19. Acompanhando a propagação do vírus em escala planetária, podemos verificar que tem se intensificado questões de ordem social, sanitárias, econômicas, políticas e afetivas. Questões estas sempre presentes, mas agora com a Pandemia ganharam a grande cena, se tornando emergentes, já que podem influenciar diretamente o número de mortes pelo vírus.
Os países historicamente com maior investimento em políticas públicas, principalmente na área de ciência, tecnologia, saúde, desenvolvimento social e educação, conseguem, ainda que também com dificuldades, lidar com o vírus de forma mais ágil, criando estratégias de proteção e atendimento a população, e aqueles que historicamente negligenciaram e continuam a negligenciar o investimento em políticas públicas tem agora um desafio muito maior pela frente.
No Brasil, lidamos com a realidade de sermos o sétimo país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas dos países africanos, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Ao mesmo tempo somos um dos países mais deprimidos do mundo, o topo do ranking na América Latina. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 12 milhões de brasileiros, ou 5,8% da população, sofrem com a doença (a média global é de 4,4%). Também de acordo com a OMS, o Brasil sofre uma epidemia de ansiedade. Segundo dados da organização, o país tem o maior número de pessoas ansiosas do mundo: 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população, convivem com o transtorno. Segundo a Internacional Stress Manegement Association, cerca de 32% dos trabalhadores brasileiros sofrem atualmente com efeitos do estresse associado ao trabalho.
Uma das verdades inconvenientes que essa realidade nos coloca é a de que somos cegos ao sofrimento psíquico causado pela desigualdade econômica e social. Se faz necessário o alargamento de consciência em torno da saúde mental do brasileiro, já que estes são os números pré-COVID19. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), é esperado que durante a pandemia estejamos frequentemente em estado de alerta, preocupados, confusos, estressados e com sensação de falta de controle frente às incertezas do momento. Estima-se que de um terço a metade da população exposta a uma epidemia possa vir a sofrer alguma manifestação psicopatológica, caso não seja feita nenhuma intervenção de cuidado específico para as reações e sintomas manifestados.
Ou seja, quando articulamos os fenômenos crise mundial estrutural, extrema desigualdade econômica e social, população com alto índice de sofrimento psíquico, o país liderando os rankings de depressão e ansiedade e o surgimento da Pandemia com forte potencial de impacto em saúde mental, estratégias de cuidado psíquico deveriam ser adotadas. Sabendo que ainda pode estar distante a descoberta de uma vacina, assim como o interesse político para um investimento estrutural em saúde mental coletiva, trago aqui alguns cuidados breves, porém importantes, alinhados as recomendações da FIOCRUZ, OMS e PNUD para lidar com o sofrimento psíquico provocado por situações de Pandemia.
O autocuidado
- Investir em exercícios e ações que auxiliem na redução do nível de estresse agudo, como meditação, leitura, escrita, exercícios de respiração, movimento do corpo (mesmo em casa) e atividades artísticas.
- Buscar fontes confiáveis de informação e mesmo fazer a gestão do uso de redes sociais. O excesso do consumo de coberturas midiáticas, muitas vezes desencontradas e com viés sensacionalista, tem impacto direto no aumento da ansiedade e do estresse.
- O uso de álcool, tabaco, medicações, excessos alimentares para lidar com as emoções tende a aumentar. Nesses casos a orientação é procurar meios de conseguir realizar uma boa gestão das emoções.
- Devemos reconhecer e acolher receios e medos em nós mesmos, procurando pessoas de confiança para conversar, ou mesmo procurando profissionais de saúde ou serviços de acolhimento emocional, público ou privado. Agora é um momento importante para se cuidar procurando ou dando continuidade a processos de psicoterapia online.
Os relacionamentos e a vida coletiva
- Investir e estimular ações compartilhadas de cuidado, evocando a sensação de pertença social (como as ações solidárias e de cuidado familiar e comunitário, por exemplo, revezamento de idas ao mercado para pessoas que fazem parte do grupo de risco).
- Manter ativa a rede socioafetiva, estabelecendo contato, mesmo que virtual, com familiares, amigos e colegas.
- O momento é de distanciamento social, porém em alguns casos há intensificação dos relacionamentos. As famílias que passavam grande parte do tempo fora de casa, com a quarentena, agora convivem juntas numa frequência muito maior. Em alguns países já houve aumento dos pedidos de divórcio. Reservar um tempo para ficar atento as próprias necessidades, buscando repactuar tarefas e dedicação ao trabalho e a família é agora vital.
- Por outro lado, a intensificação também pode acontecer devido ao excesso de eventos online, como lives, webinários, cursos, e mesmo trabalho remoto. Deve-se buscar perceber e reconhecer o que é possível dar conta, evitando assim possíveis crises de ansiedade.
Formas de lidar com o trabalho
- Em relação ao trabalho três situações distintas podem surgir durante a Pandemia:
- Na primeira situação, ao trabalhar remotamente pode-se perceber o aumento da jornada de trabalho, seja para lidar com a ansiedade ou mesmo porque as empresas no geral têm buscado formas emergenciais de lidar com a crise econômica intensificada pelo surgimento do COVID19 no mundo. Neste último caso, deve-se buscar renegociar a dedicação em prol da saúde mental individual e da equipe;
- Na segunda situação, há o fantasma do desemprego, já que os impactos econômicos diminuem recursos e consequentemente postos de trabalho;
- No terceiro caso, há aqueles que precisam se submeter a subempregos, a um trabalho no formato da precarização ou uberização, serviços de entrega ou atendimento, e nestes casos há maior exposição ao vírus.
- Em todas as situações, é importante reenquadrar os planos de vida de forma a seguir produzindo de forma adaptada às condições associadas a Pandemia. Um importante exercício é pensar como se fortalecer profissionalmente para um momento de retomada da economia. A certeza de que em algum momento isso vai acontecer também nos ajuda a continuar.
Com isso, consideramos que a magnitude da epidemia e o grau de vulnerabilidade em que uma pessoa se encontra no momento podem desencadear problemas de ordem psicossocial. Entretanto, é importante destacar que nem todos estes problemas poderão ser qualificados como doenças. A maior parte dos casos poderão ser classificadas como reações momentâneas e naturais diante de uma situação anormal, tendo em vista que a Pandemia COVID19 impacta os seres humanos de maneiras diferentes, visto suas características individuais.
E por fim, uma das mais básicas perguntas que devemos nos fazer em um processo de busca por saúde mental e equilíbrio é: qual a nossa parcela de responsabilidade pelo sofrimento que vivenciamos? O que podemos fazer daquilo que fizeram de nós? A vida mostra frequentemente a sua impermanência, principalmente neste momento sociopolítico delicado. É necessário percebermos o que de fato é importante para nós e o que é acessório, para além dos planos e ideais. A vida se manifesta dia a dia no real a nossa volta. Reconhecendo as contingências a que estamos expostos e o que nos entristece, nos resta buscar se compor, se aliar e se encontrar com aquilo que nos potencializa e fortalece, mesmo depois que a quarentena passar.
Fontes:
Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID19. Abril de 2020. Em www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br
Recomendações da Organização Mundial de Saúde para cuidados de saúde mental durante a Pandemia de COVID19. Março de 2020. Em https://news.un.org/pt/story/2020/03/1707792
Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. 2019. Em http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2019_pt.pdf
Para obter ajuda em casos de emergência em saúde mental, ligue para o CVV (Centro de Valorização da Vida): 188.
Sobre o autor:
Flávio Seixas, é psicoterapeuta, facilitador organizacional e de processos de mudança pelo programa Germinar, especialização em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui extensão em Psicologia Social (USP) e Psicodrama (Sedes) e Aprimoramento em Liderança pela LUMO e Instituto EcoSocial. Experiência de mais de 10 anos na gestão de projetos sociais, investimento social, mentoria e desenvolvimento de grupos e lideranças. Já desenvolveu oficinas no Brasil, Argentina, Equador, Portugal e Moçambique, e com empresas como Camargo Corrêa, Santista Têxtil, InterCement, Alpargatas, Instituto C&A, Instituto BRF e PepsiCo. Atualmente é sócio fundador da consultoria em desenvolvimento humano e social, Awá Desperta. ( e-mail: flaviocseixas@gmail.com - instagram: @flavioseixaspsi )