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Tragédia em Brumadinho

Brumadinho e a construção de uma rede de indignação e esperança

Por Giane Gatti, Especial para Plurale

De Brumadinho (MG)

Como seguir em frente com tanta dor e revolta causadas no passado? É tarefa difícil, mas possível por meio da construção de Redes de Indignação e Esperança, tema do seminário que apresentei em Brumadinho, com a participação da ex-senadora Marina Silva, do Padre Júlio Lancelotti, da Paróquia São Miguel Arcanjo na Mooca, em São Paulo, da jornalista e escritora Daniela Arbex, autora do primoroso livro Arrastados, sobre a tragédia, e Alexandra Andrade, presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo rompimento da barragem (Avabrum). O evento ocorreu no sábado, 7 de maio, no auditório da secretaria municipal de educação.

Legenda da foto: A escritora e jornalista Daniela Arbex; a ex-Senadora Marina Silva; Alexandra Andrade, presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo rompimento da barragem (Avabrum) e a jornalista Giane Gatti (moderadora do evento).

Tudo na tragédia de Brumadinho é gigantesco, segundo Arbex:

- maior desastre humanitário do Brasil;
- segundo maior desastre ambiental do país (Mariana causou mais danos);
- maior operação de busca do mundo (já são mais de três anos de resgate e das 272 vítimas, cinco ainda não foram encontradas);
- a dor, a saudade e indignação são descomunais.

Na abertura, falei sobre a importância de nos reconectarmos com a nossa essência: amorosa, altruísta e pacífica e com a natureza que nos cerca. E que o lucro não pode estar acima da vida.

O Papa Francisco afirma que a medida do desenvolvimento é a humanidade." Sem esta centralidade e orientação, ficaremos prisioneiros de um círculo alienante que somente perpetuará dinâmicas de degradação, exclusão, violência e polarização. A política e a economia devem estar a serviço da vida, especialmente da vida humana".

É preciso indignar-se e agir. Mariana, Brumadinho...precisamos acabar com a perda de memória crônica da qual sofre o brasileiro. Fazer o exercício diário de lembrar de não esquecer.

Em um vídeo exibido no evento, a jornalista e escritora Cristina Serra falou sobre o fato de, tanto em Mariana como em Brumadinho, as empresas responsáveis sabiam dos riscos das suas barragens e não tomaram as medidas de segurança adequadas para proteger seus trabalhadores, as comunidades próximas e meio ambiente, além da omissão do poder público. "E qual o resultado de tudo isso? Morte, dor, destruição de famílias e devastação do meio ambiente.

Luta pelos vulneráveis
Padre Júlio Lancelotti, grande defensor da vida e da dignidade humana, e que faz um trabalho importante na pastoral com moradores de rua na cidade de São Paulo, participou de forma virtual e ressaltou a importância de nos engajarmos numa luta que deve ser histórica. Não é a luta de um fato, de um episódio isolado. "Fazemos parte da luta de Chico Mendes, Antônio Conselheiro, Zumbi dos Palmares, Dorothy Stang e Margarida Alves na Paraíba".

Segundo Lancelotti, o dano moral na dimensão afetiva, psicológica e humana é irreparável. "É preciso uma esperança teimosa" e encerrou dizendo aos familiares de vítimas e aos atingidos pelo rompimento da barragem para não desanimarem e não desistirem. "Brumadinho está no coração do Brasil."

Arrastados
Em seu livro Arrastados, Daniela Arbex (foto) narra as 96 horas pós-rompimento da barragem. Foram mais de 300 entrevistas e cinco mil páginas de material. Ela afirmou que para falar sobre a necessidade de ter esperança no futuro, é preciso revisitar o passado, "porque esquecer é negar história e, nesse caso, esquecer nao é uma opção!"

Seu relato, que contou com gravações de áudios das primeiras ligações com pedido de socorro ao Corpo de Bombeiros e com imagens impactantes, emocionou todos.

"O fato é que essas pessoas não tinham a mínima chance de se salvar". Segundo ela, o tsunami de lama, que se formou com o rompimento da barragem, veio de um paredão com 88 metros de altura e 720 m de largura, equivalente a dez edifícios de 24 andades lado a lado, e que armazenava 12 metros cúbicos de rejeitos a mais de 100 km/h. O Córrego do Feijão se transformou em um mar. "Junto com toda a lama vinham tratores, caminhões de 100 toneladas, pedaços de edificação, pessoas e animais. A violêndia varreu uma pousada do mapa e um pontilhão".

Arbex deu voz e rosto às vítimas que tiveram suas vidas ceifadas: contou sobre pais à espera de seus filhos, filhos à espera de seus pais, quando o desespero havia tomada conta de todos e as notícias sobre sobreviventes eram desencontradas logo após a tragédia. "Dona Arlete, cujo filho Wagner não voltou do trabalho, tomou a decisão mais difícil que uma mãe poderia tomar: a de não enterrar um filho". Quando o funcionário do IML lhe respondeu que havia sido encontrada uma perna do rapaz, ela se negou a fazer o enterro.

Mais um Dia das Mães dolorido

O seminário aconteceu na véspera do Dia das Mães, em que dezenas delas choram a falta dos seus filhos e filhas, e muitas delas tiveram interrompido o desejo da maternidade. Fernanda Damian e Eliane Melo estavam grávidas de cinco meses. Já Paloma, que trabalhava na pousada que foi destruída pela lama, brincava com o filho Heitor, que nem tinha dois anos, onde também estavam o marido e a irmã quando a barragem se rompeu. Os três morreram. Resgatada e hospitalizada, ela soube do enterro do marido depois que já havia ocorrido. "Em segundos, toda a vida dessa mulher, e de várias mulheres, é completamente atravessada por esse desastre-crime". Em seu livro, Daniela Arbex conta que Heitor tinha a língua presa e ainda não havia pronunciado a palavra "mãe". A tragédia também resultou em mais de cem órfãos, que sofrem com a ausência de seus genitores. "Talvez só no futuro vão conseguir entender um pouco da própria história", ressalta.

Ela citou a bandeira do Brasil resgatada da lama logo no começo das buscas, e que foi pendurada na parede de uma das salas onde foi montado o Centro de operações de resgate dos bombeiros. "Ela é muito simbólica. É a história de um país que precisa se repensar enquanto sociedade e cidadania."

Mariana e Brumadinho nunca mais

Alexandra Andrade, presidente da Avabrum (foto), não tem um dia sequer, algumas horas em que possa "se desligar da tragédia". O irmão Sandro e o primo Marlon estão entre as vítimas. Nascida e criada em Brumadinho, ela conhecia, em um grau mais próximo, ao menos 70 das vítimas. Além da sua dor da perda e de ajudar a mãe e os sobrinhos a passarem pelo trauma, a função de presidente da associação faz com que acompanhe de perto tudo o que envolve os processos judiciais e os familiares das vítimas, assim como também os moradores do Córrego do Feijão atingidos pelo rompimento da barragem. E para completar, a geógrafa, com pós-graduação em gerenciamento de recursos hídricos, é funcionária da secretaria municipal de meio ambiente e lida com o desproporcional desastre ambiental. "Eu mesma fiz da minha dor uma luta. Eu vi que precisava tentava ajudar de alguma maneira para minimizar a minha dor."

Alexandra afirma que a Avabrum quer menos palavras e mais atitudes de empatia e respeito por parte da Vale. É preciso ressignificar a morte e as vivências traumáticas. "Queremos deixar um legado para toda a sociedade, de modo que nunca mais aconteça. Mariana e Brumadinho, nunca mais!" E desabafa: "A cada recurso que a Vale entra, é mais uma dor que aumenta no coração do familiar e ela recorre até esgotar todas as possiblidades", completando: "Responsabilidade Social não é marketing".

A força da indignação para construir esperança
“Como seria importante se essa narrativa tão vívida que foi feita pela Daniela pudesse ser ouvida pela diretoria da empresa... para que sintam o peso que significa tudo que está sendo rememorado aqui como uma forma de elaboração e ressignificação, que é constante desde que isso aconteceu em 2019”. Foi com essas palavras que a senadora Marina Silva começou sua explanação.

“A gente sabe de tudo isso, a gente vê nos jornais, mas é muito difícil olhar para essas pessoas, abraçar essas pessoas que tiveram essa perda, lidar com a carga e sofrimento das pessoas que vivenciam ainda hoje essa perda. Então as minhas palavras são muito mais de solidariedade”, disse.

De acordo com a senadora, quando há tragédias dessa magnitude, a esperança que sai só tem uma forma de acontecer: "É quando ela deixa de ser um discurso, uma mensagem, um enunciado e se transforma em um próprio ato de vida. A esperança de cada uma agora é ato. É o ato de fazer com que a Vale responda pelos crimes que cometeu, que faça as reparações, que as famílias sejam respeitadas, que cada pessoa seja lembrada e que a cidade seja igualmente reparada e o meio ambiente".

Na sua visão, precisamos ser persistentes na justiça, na verdade, no amor e na esperança.

"Às vezes a gente vem pensando que vai acolher e, quando chega aqui, se sente acolhida". E terminou com uma poesia que escreveu especialmente para a ocasião, mesmo dizendo não considerar-se poeta.

"(...) voz, coragem, força e indignação são fruto do mesmo espírito
origem do mesmo verbo
lugar onde me inspiro e a semelhança preservo
na comunhão com meu próximo (...)"

Durante o evento, Sirlei de Brito Ribeiro, que era secretária de desenvolvimento social de Brumadinho e professora da Faculdade ASA, foi homenageada, e a senadora Marina Silva recebeu um livro escrito em homenagem ao trabalho desenvolvido por Sirlei, entregue pela professora Conceição Parreiras e Silvania, irmã da vítima, que falou muito emocionada: "Minha irmã não trabalhava na Vale nem estava na pousada. Ela estava em casa, o lugar mais seguro que a gente tem, onde encontra descanso e segurança, quando foi atingida pela lama."

O cantor e compositor Sanráh Ângelo (foto) interpretou Sentinela, de Milton Nascimento e Fernando Brant, e Esperança e o amor, de sua autoria e Marcos Aranha do Brasil, e que foi composta logo após a tragédia.

Ao concluir o seminário, disse que meu desejo, na verdade, era um convite. Que a gente não deixe Brumadinho ser esquecida. Que todos nós sejamos um elo dessa corrente, dessa rede de indignação e justiça.

Pelo fim da cultura do descarte e por uma cultura do afeto e do cuidado.

Que sejamos pessoas melhores e honremos as 272 vítimas e seus parentes e amigos afundados na dor.
Vamos manter acessa a luz da grandeza da vida de todas elas.
Que sejamos seu legado.







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