Por Nádia Rebouças, Colunista de Plurale
Fome, fome, fome! Todo dia fome! Água com farinha e açúcar de manhã e água com farinha e sal no começo da noite... Lágrimas de mãe lavavam as canecas usadas para a simplória mistura. Miguel não era o irmão mais velho, nem o mais novo que ainda era quase bebê...o choro de fome é baixo, diferente do choro de raiva... é um choro soluço, um choro que não vê solução e dói... por isso é um choro no silêncio. A fome é silenciosa, olhando ninguém vê a fome. Só suas consequências. Miguel - morador da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Santa Luzia, 11 anos, filho de mãe desempregada com outros cinco filhos - olhava, sentia, escutava um pouco o choro da mãe e um pouco o choro baixo e sentido do irmão bebê, misturava tudo com o silêncio dos outros irmãos. Eu perguntaria a Mia Couto se a fome afina silêncios... perguntaria ao Krenak como os não indígenas se perderam das florestas e das vidas perto de todas as outras vidas, e descobriram a fome nos amontoados de gente que chamam de cidades.
Foto - Reprodução do Jornal Nacional - Clique aqui e assista à reportagem - TV Globo
Miguel perguntaria a Deus: onde achar alguma comida? Algum alimento? Chamar quem? Veio uma singela lembrança de um número, 190. Para esse número se ligava, pensou ele, quando não havia qualquer outra solução... Pegou o celular, produto do tempo que a mãe ainda trabalhava e ligou para o 190. Numa voz de silêncio de fome disse: Olha temos fome... Respondeu assim, a pergunta do telemarketing da polícia de BH, sobre qual era a emergência.
Fico aqui imaginando a reação na Polícia Militar, dos que ficaram sabendo dessa ligação que anunciava o assassinato de uma mãe e seus 6 filhos! Esse assassinato que acontece todos os dias em todas as partes do Brasil. Falam em 33 milhões de pessoas, tudo isso?? Quantos tem 11 anos? Quantos são Miguéis? Quantos conhecem o 190? Quantos sabem que a cidadania é conquistada? Que precisamos gritar para conquistar direitos e políticas públicas? Quanto sabem que a fome voltou nos últimos anos? Que todas as conquistas do passado, inclusive o CONSEA- Conselho de Segurança Alimentar – foi uma das primeiras destruições desse governo?
Miguel não deve saber de nada disso, apenas que o 190 é proteção e se é proteção não devia gostar da fome. E os humanos que receberam o pedido, reagiram como humanos. O que aconteceu a partir daí no meu sonho? Essa família, comeu! Miguel comeu feliz e não deve mais escutar o choro nos silêncios, por algum tempo. Ouviu sorrisos, recebeu várias doações, deu entrevistas. Miguel mostrou a tal criatividade e inovação do nosso povo!
Acordei, que sonho! Além de querer abraçar o Miguel eu fiquei sabendo que o 190 tocou por todos os rincões desse meu país! Que Betinho acionou o som das cidades e se ouviu: Ligue190! É proteção! A fome no Brasil é sim um caso de polícia!
Imagine que sonho estranho esse meu... um país que alimenta o mundo com seu agronegócio deixando que sua própria gente com fome... impossível!!