Por Marcelo Moreira, Sócio-Diretor da DiversaCom
O jornalista Marcelo Moreira e John Lewis - na época do histórico discurso, John Lewis era um jovem de 23 anos, representante do movimento estudantil. Ele é um ícone da história americana na luta antirracista. Foi eleito deputado federal pelos Democratas no fim dos anos 80 e por 33 anos lutou no parlamento pelo legado e pela construção do sonho de Luther King.
Neste 28 de agosto completam-se 60 anos de um dos dias que ficaram marcados na história da luta racial. Foi nesta data em 1963, que o reverendo Martin Luther King fez um discurso na capital dos Estados Unidos até hoje marcado como um dos mais importantes da humanidade. As quatro palavras “I have a dream” ecoaram entre as 250 mil pessoas que assistiram ao vivo, lotando o entorno do espelho d’água do Memorial Lincoln e entre outras centenas de milhões mundo afora nos anos que se seguiram.
Aquele discurso fez parte da marcha pelos Direitos Civis que passou por várias outras cidades americanas. Foi organizada por Luther King e outras lideranças negras que lutaram contra a segregação racial. Entre aqueles líderes estava John Lewis, na época um jovem de 23 anos, representante do movimento estudantil. Ele é um ícone da história americana na luta antirracista. Foi eleito deputado federal pelos Democratas no fim dos anos 80 e por 33 anos lutou no parlamento pelo legado e pela construção do sonho de Luther King.
Eu conheci John Lewis pessoalmente há seis anos, quando era um Fellow da Universidade de Michigan. Foram dois encontros. No primeiro, por acaso, nos cruzamos no aeroporto em Washington, DC. Fomos apresentados pela diretora da bolsa Lynette Clementson. Ela me disse que eu estava diante da história viva americana. Lewis, muito gentil, apertou minhas mãos e posou para fotos.
Em 2017, John Lews, em visita à Universidade de Michigan, discursou para uma plateia lotada de estudantes. O auditório foi o mesmo em que Martin Luther King havia estado e discursado em 1962, no auge do movimento pelos direitos dos negros.
O segundo foi mais marcante. Numa visita à Universidade de Michigan assisti ele discursar para uma plateia lotada de estudantes. O auditório foi o mesmo em que Martin Luther King havia estado e discursado em 1962, no auge do movimento pelos direitos dos negros.
Em 2017, Lewis estava lá como convidado da faculdade de Arte e Design. Foi contar um pouco da sua história e sobre a sua biografia lançada em formato de história em quadrinhos _ sucesso como um formato atraente para conectar jovens ao Movimento dos Direitos Civis. Aquele senhor septuagenário falou com a garotada universitária como se fosse um deles. Seu carisma e poder de oratória explicam bem porque Luther King escolheu um menino de pouco mais de 20 anos a ajudá-lo a mudar a História.
Lewis começou falando sobre seus dias de menino. Foi criado como muitas famílias de negros americanos num canto pobre no estado de Alabama. Sua alegria na infância era criar galinhas na pequena propriedade dos pais. De tanto cuidar dos pintinhos, ele se apegava e não comia frango nas refeições. Lewis cresceu no meio dos frangos e galinhas até que um dia, inspirado numa bíblia que ganhou de presente de um dos irmãos, resolveu que queria ser pastor.
E as galinhas foram as primeiras que ouviam ele pregar. “Tinha galinha que balançava a cabeça concordando. Outras discordavam. Mas nenhuma delas dizia amém”. A plateia se esparramava em gargalhadas. “Eu acredito que muitas daquelas galinhas que me viam pregar nos anos 40, 50 me ouviam mais do que muitos dos meus colegas hoje no congresso”. Às gargalhadas, se somaram aplausos.
Até os seis anos de idade ele nunca tinha saído da fazenda e tido contato com pessoas brancas. Foi nessa idade que os pais o levaram para conhecer o mundo além das cercas da fazenda. Na cidade ele ficou curioso com as placas que indicavam lugares para homens brancos, homens de cor, mulheres brancas, mulheres de cor. Ele então perguntou ao pai o motivo daquelas placas. E o pai respondeu: “Garoto, é assim que as coisas são. Não fique no caminho. Não se meta em briga”. No que Lewis disse para a plateia. “Mas eu era inspirado a me meter em briga. A briga boa, brigas necessárias”. Os jovens alunos de Michigan aplaudiram o reverendo de pé no fim do discurso.
E não foram poucas as “brigas necessárias” na vida de John Lewis. Com 21 anos ele ajudou a fundar o movimento Free Riders. Naquela época pessoas negras não podiam sentar nos bancos da frente dos ônibus. Os ativistas então começaram a embarcar em ônibus e sentando na frente. Muitos destes ônibus foram perseguidos e atacados por membros da Ku Klux Klan.
A lei que proibia negros sentados na frente dos ônibus era uma das muitas leis conhecidas como “Jim Crow”. Nos anos do cinema mudo, Jim Crow era o personagem de uma comédia muito popular. Um homem negro, mas interpretado por um ator branco que pintava o rosto de preto e se mostrava um palhaço na tela. Os pretos representados por Jim Crow eram idiotas, ignorantes, incapazes de fazer a coisa certa. As “leis Jim Crow” tratavam a população preta como raça inferior, segregando nas escolas, habitação, lugares públicos, nada que os fizesse parecer no mesmo nível da população branca superior. Esse arcabouço legislatório criado pelos americanos serviu de inspiração para as leis do Apartheid, na África do Sul.
Para lugar contra esse sistema discriminatório muitas outras “brigas necessárias” se seguiram na vida do jovem John Lewis. Ele foi eleito presidente do Comitê Coordenador da Não Violência Estudantil e foi assim que conheceu e esteve ao lado de Martin Luther King na marcha pelos Direitos Civis. A maior briga que se meteu foi em 1965. Lewis quase teve o crânio perfurado ao participar de uma manifestação pacífica contra o racismo numa caminhada entre as cidades de Selma e Montgomery. Aquele dia ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
Em 1986, John Lewis foi eleito congressista pela primeira vez. E desde então passou a lutar em Washington usando a voz no parlamento como sua maior força. O ex-presidente Bill Clinton diz que por mais de 50 anos Lewis foi uma voz ressonante e moral pela equidade. No mandato de Barack Obama John Lewis recebeu do presidente a mais alta honraria civil, a Medalha Presidencial da Liberdade. John Lewis morreu de câncer em 2020. Ele era o ultimo representante vivo dos que discursaram em Washington naquele 28 de agosto de 1963.
Passados 60 anos a luta antirracista está longe de acabar. O sonho de Lewis, Luther King e tantos outros segue sendo perseguido. O Brasil também sofre efeitos do racismo. Nosso país recebeu muito mais africanos escravizados do que os que foram para a América do Norte. Tivemos alguns avanços. A agenda ESG, com foco no S do social, cada vez mais é perseguida nas empresas e no mundo corporativo em geral. A meta de se atingir 56% de colaboradores negros nas companhias virou um índice medido pela bolsa de valores. Ter mais negros em cargos de liderança permite mais multiplicidade nas decisões.
As metas são promissoras não só na equidade racial. Grupos sub-representados em geral fazem parte da agenda. Estamos longe da equidade plena e a resistência existe. Mas é possível. A sociedade precisa se engajar nas boas brigas, nas brigas necessárias”. Amém, John Lewis.