Se observarmos à nossa volta, veremos que, sem qualquer intervenção direta de outros microssistemas orgânicos, os organismos vivos se reproduzem e se desenvolvem autonomamente, o que não significa que independam do meio ou das perturbações externas; ao que nisto reside a ideia de paradoxo. Alguns exemplos poderiam ser a própria ação humana irresponsável e o uso insustentável dos recursos naturais; agindo deste modo, a espécie humana pode comprometer a vida no planeta, incluindo a sua. De qualquer forma, há algo na natureza (para muitos, um poder superior ou divino) invisível aos nossos olhos, que permite que os seres vivos possam se autogerar e se desenvolver da mesma forma; mesmo que, para sua preservação, tenham que se adaptar às mudanças. Daí a origem do termo grego autopoiesis: auto = próprio e poiesis = criação ou produção.
Maturana e Varela defendem, ainda, a ideia de que a vida é caracterizada por uma organização dinâmica, que permite a autossustentação e a adaptação ao ambiente. Os seres vivos são sistemas autônomos, capazes de se autogerar continuamente por meio de processos de autorregulação (despendem energia com o objetivo de atingir o equilíbrio dos sistemas); interação com o ambiente (realizam constantes trocas com o ambiente no qual estão inseridos); autorreprodução (autorreplicam-se e mantêm-se, não obstante os desafios que lhes são continuamente apresentados), adaptabilidade (têm capacidade de adaptação e de fornecer respostas às mudanças); e complexidade/diversidade (organizam-se dinâmica e intrincadamente, com múltiplos níveis de interação e uma variedade enorme de formas e funções).
Vale reiterar que isto, contudo, não permite concluir que haja independência. E por uma razão muito simples: nenhum ser vivo é totalmente independente, seja dos outros seres vivos, seja do meio ou de ambos. De um modo ou de outro, todos os seres vivos, e isto inclui nós humanos, estão em uma situação de interdependência, em maior ou menor grau, com os demais seres vivos, somos condicionados pelo meio no qual vivemos e deixamos a nossa pegada pelo simples fato de existir.
Como se vê, a autopoiese significa a manutenção, a reprodução e a adaptação dos sistemas vivos. Através desta teoria, desenvolvida originalmente apenas para a compreensão de sistemas naturais, também podemos pensar nos sistemas inteligentes, como a Inteligência Artificial (IA).
Tanto os sistemas vivos quanto a IA interagem dinamicamente com o ambiente no qual operam. Ao aplicar a perspectiva da autopoiese à IA, podemos enxergar semelhanças e diferenças entre os sistemas vivos e as máquinas. Embora estas últimas não possuam uma existência biológica, podem ser projetadas para imitar certos aspectos da vida, como o aprendizado, a adaptação e a tomada de decisões. Uma IA autônoma, em particular, por criar sistemas que possam se autorregular e se aprimorar continuamente sem intervenção humana direta, pode perfeitamente ser inserida no objeto de estudo da teoria da autopoiese.
Através da IA, com o seu aprendizado de máquina, ocorre algo semelhante às sinapses geradas entre os neurônios no cérebro humano. Ou seja, as redes neurais artificiais podem se adaptar e melhorar suas habilidades, à medida que são expostas a novos dados e experiências. Os algoritmos de IA podem ser programados (e depois se autoprogramar infinitamente), com o intuito de otimizar suas respostas e seus comportamentos. Isso permite estabelecer uma inserção na autopoiese, à medida que os sistemas de IA se tornam capazes de se autogerar em termos de conhecimento, de aplicações e de interações com o meio.
Não se pretende aqui, de uma forma simplista, comparar a vida natural com a IA. Os organismos vivos, em especial a espécie humana, possuem uma complexidade enorme. Robôs estão sendo programados e desenvolvidos para serem altamente eficientes em tarefas específicas, porém ainda carecem da totalidade da experiência subjetiva e da capacidade de autorregulação que vemos, em especial, no homo sapiens. Segundo o professor e pensador Yuval Noah Harari, uma das características que mais distingue os humanos dos demais seres vivos e permite que os primeiros dominem, até agora de forma absoluta, é a capacidade de cooperar com flexibilidade e em larga escala. Robôs, a priori, não cooperam entre si, embora possam ser programados para esta “tarefa”, ou mesmo aprender a fazê-lo (Machine Learning). Os organismos vivos, em especial a espécie humana, possuem uma complexidade enorme. Especialistas em IA, contudo, vão afirmar que as emoções poderiam, ser aprendidas e/ou apreendidas pelas máquinas. E os comportamentos éticos, morais e culturais de uma sociedade, adotados e aceitos em determinado momento histórico, também poderão?
Mas, vejamos o seguinte: se, tal como desenvolvido por Maturana e Varela, o que caracteriza um sistema vivo - seja ele animal ou vegetal - em relação aos demais é a sua autonomia - em outras palavras, cada sistema vivo constitui um microssistema próprio, embora em constante interação com os demais microssistemas (paradoxo) - e ainda, que elementos externos não influenciam diretamente tal sistema. Isto porque ele possui os seus componentes intrínsecos, para que as relações sistêmicas caracterizem-no como um sistema vivo, a Inteligência Artificial, uma vez tenha alcançado a sua singularidade (que é a sua meta final, ou terceira etapa), ou seja, torne-se tão poderosa a ponto de nós humanos não mais conseguirmos compreendê-la e controlá-la, poderá ser considerada um sistema vivo?
Esta é uma questão que precisa ser discutida, neste aspecto, principalmente pelos especialistas do Direito e estudiosos de ética. Isto porque muitos sistemas vivos (seres humanos, mas não exclusivamente), possuem direitos. Terá a Superinteligência Artificial (ASI) direitos e deveres? Importante também mencionar os deveres, pois como lembrado por Cassalta Nabais, “não existem direitos sem deveres”. É essencial, neste aspecto, como avançado está na União Europeia, Estados Unidos, e até mesmo no Brasil, o desenvolvimento de um conjunto de regras para regular as questões jurídicas da IA, mas terá ela, notadamente quando alcançar a terceira fase (ASI), um estatuto jurídico próprio? Esta é uma questão que tem tirado o sono de muitos juristas e filósofos.
Em sede de conclusão, mas longe de esgotar o tema, podemos afirmar que Maturana e Varela, com a teoria da autopoiese, nos permitiram compreender melhor os mistérios da vida natural, não obstante o grande desafio do momento seja compreender melhor os usos e os riscos da Inteligência Artificial. Logo, cabe a todos nós, ainda mais neste momento de tantas incertezas acerca do que nos espera no futuro, explorar esta teoria para buscar compreender os reais impactos dos sistemas inteligentes, sobretudo com vistas a garantir que venham a beneficiar a humanidade como um todo, ao invés de lhe acarretar a extinção.
(*) Maria Elena Johannpeter é palestrante, consultora, Fundadora, Produtora do Canal TraveXia e membro do Conselho Deliberativo da ONG Parceiros Voluntários.
(**) Leandro Mello Schmitt, Professor de Direito na Unisinos, advogado, mestre em Direito e Doutor em Filosofia. Coordenador de pesquisas no campo da ética aplicada à Inteligência Artificial.