Paula Guatimosim, do Boletim Faperj
O primeiro Curso de Moda nasceu em 2008. Até hoje, já passaram pelo projeto mais de 3 mil mulheres (Fotos: Coletivo Mulheres do Salgueiro) |
Costurar um ecossistema empreendedor não é tarefa fácil. Talvez envolva etapas similares à confecção de uma coleção de roupas. Pesquisar e desenvolver modelos, fazer os moldes, cortar, alinhavar e costurar o tecido e, com a peça pronta, fazer os acabamentos. O projeto "Costurando um ecossistema empreendedor no Salgueiro/SG", desenvolvido no Complexo do Salgueiro, município de São Gonçalo, também passou, ao longo de 20 anos, por várias etapas até assumir os atuais contornos do “Coletivo Mulheres do Salgueiro”. Uma comunidade localizada na região Metropolitana do Rio, cortada pela BR 101, marcada pela vulnerabilidade social, a riscos relacionados à saúde e ao meio ambiente. Suscetível a enchentes e com altas taxas de desemprego decorrente da baixa escolaridade da população, a comunidade sofre com a carência de políticas públicas.
O projeto “Costurando um ecossistema empreendedor no Salgueiro”, proposto à FAPERJ pela pedagoga Janete Nazareth Guilherme, ativista dos direitos humanos, militante do movimento de mulheres e economia solidária, ganhou suporte do Programa de Apoio em Empreendedorismo de Impacto Socioambiental Positivo do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo da proposta, cuja vigência vai até fevereiro de 2024, é elaborar um catálogo com a descrição de cerca de 100 empreendedores da região; fornecer um guia para os empreendedores com a listagem das principais instituições que apoiam o empreendedorismo, dar continuidade ao curso de moda promovido anualmente pelo Coletivo e promover workshops de capacitação.
Janete conta que o movimento surgiu por volta do início dos anos 2000, na busca de alternativas de geração de renda para as mulheres da comunidade, muitas delas catadoras do lixão de Itaoca, que só viria a ser desativado em 2012. A opção por confeccionar roupas e acessórios com o reaproveitamento de banners e com couro curtido de tilápia buscava aproveitar esse subproduto gerado pelos eventos e diversos projetos de piscicultura que visavam impulsionar a criação e processamento desse pescado na região.
Os produtos confeccionados com couro de tilápia oferecem um diferencial ao mercado |
Em 2006, com o apoio da incubadora Instituto Genesis, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o Coletivo iniciou o desenvolvimento de um produto de moda diferenciado, que utilizava couro de tilápia. Para tanto, foi construído no Complexo do Salgueiro um laboratório para o curtimento e beneficiamento do couro do pescado. “Era um empreendimento que não ocupava o asfalto, mas sim o chão da favela, para beneficiar seus moradores”, ressalta Janete. O primeiro Curso de Moda nasceu em 2006 e foi idealizado com foco na costura criativa, visando o reaproveitamento de matérias-primas e a sustentabilidade ambiental. Janete explica que toda roupa ou acessório produzido é fruto de materiais reaproveitados.
O primeiro projeto proposto por Janete à FAPERJ foi no ano de 2011. Como o título "Desenvolvimento de Coleção Inovadora de Joias com Couro de Tilápia", a proposta recebeu recursos do programa de Auxílio a Projetos de Inovação Tecnológica da Fundação. “Desde o início senti que apenas a geração de renda não era suficiente para capacitar aquelas mulheres. Era preciso uma educação libertadora que as tornassem agentes transformadoras das próprias vidas”, conta Janete.
Para dar conta de tarefa tão desafiadora ela também buscou formação, cursou Pedagogia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e se especializou em educação e organização popular comunitária e gestão de projetos sociais. Além da FAPERJ, o Coletivo Mulheres do Salgueiro, que integra o Centro de Integração e Desenvolvimento Comunitário Comunidades em Ação (CIDC) conta com o apoio da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), por meio do Grupo de Extensão ComPEAS (Comunidade de Prática sobre Educação: Ambiente e Saúde) e o Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur (GEAsur).
Desde o início do projeto a pedagoga Janete sentiu que a geração de renda não era suficiente para capacitar as mulheres |
Ao longo dessas duas décadas de funcionamento, Janete estima terem passado pelo Coletivo mais de 3.000 mulheres. A líder comunitária recorda o caso da mulher que sofria violência doméstica e com o tempo criou coragem para abandonar o marido. Ela e os dois filhos foram acolhidos temporariamente em uma moradia emprestada, mas com o tempo e trabalho conseguiu renda para se mudar para uma casa própria. “Pensamos no Coletivo como um espaço de liberdade, um local para troca de saberes, experiências e de acolhimento”, ressalta Janete.
O couro de tilápia, que se esperava ser um passivo ambiental a ser aproveitado, abundante na região devido aos projetos de piscicultura, hoje é adquirido no município de Barra do Piraí, a 137 quilômetros de distância. “Como de costume, as administrações municipais mudam e não dão continuidade ao que foi realizado pelo gestor anterior”, queixa-se Janete. As roupas produzidas no Coletivo são vendidas em eventos e badaladas feiras de moda, atendendo a diversos convites que chegam a todo momento. Especialmente após a pandemia de Covid-19, com o crescimento do desemprego e da economia informal, tanto o curso de moda quanto as ações educativas ganharam mais importância e buscam formar mulheres para práticas empreendedoras mais sustentáveis, saudáveis e ambientalmente seguras.