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Onde você guarda seu racismo? Quando você deixa escapar seu racismo?

Por Nádia Rebouças, Colunista de Plurale

Flávia Oliveira, a querida jornalista, publicou num artigo no jornal O Globo em setembro:

"Duas décadas atrás, na esteira da Conferência Mundial contra a Discriminação Racial, em Durban (África do Sul), um conjunto de organizações da sociedade civil, sob protagonismo do movimento de mulheres negras, pôs na rua a campanha “Onde você guarda o seu racismo”. Até o lançamento, em 2004, a iniciativa colheu, em espaços públicos do Rio de Janeiro, três centenas de depoimentos, transformados em anúncios de TV, spots para rádios, outdoors, cartazes. A enquete tinha a intenção de tirar o véu da democracia racial e provocar brasileiros e brasileiras sobre o preconceito que levavam.... Afinal, só guarda quem tem. Hoje, a pergunta que cabe é outra: “Quando você libera o seu racismo?”.



Sim, foi uma forte campanha, com apoio total da Rede Globo. Fui convocada a pensar no racismo, como tema de comunicação, pelo Ibase, que coordenava as organizações da sociedade civil. Foi um grande stress. Tudo começou com o resultado de uma pesquisa do Instituto Perseu Abramo onde 82% diziam que existia racismo no Brasil, no entanto quando a pergunta era: "Você é racista?" a resposta era não. Só 4% admitiam ser racistas.

As organizações queriam lançar a campanha no dia 20 de novembro. O tempo ia passando, eu lia e pesquisava, conversava com negros e brancos e nenhuma ideia pertinente me aparecia. Fernanda Carvalho do Ibase me ligou quando eu estava num taxi, dento do Túnel Rebouças. Eu ansiosa, lembro de dizer a ela: Fê calma, como você quer que eu resolva o mais grave problema da história do Brasil rápido?? Assim que desliguei meu modesto celular naquela época, “escutei” uma pergunta do meu grilo falante, que sempre chamei de Preta Velha, “Onde você guarda o preconceito? Quando percebi eu já perguntava para o motorista do taxi: “Onde você guarda seu racismo?” Ele respondeu calmamente: NA PELE. Bem, mentalmente gritei eureca! Liguei para a Fernanda e disse: _Calma Fê parece que encontrei um caminho. Descobri que a pergunta não dava chance de defesa para o respondente. A pergunta já assumia o racismo. Cheguei no escritório e conversei com a equipe que já conseguiu produtora para fazer as entrevistas de graça. Estávamos acostumados porque ficamos 6 anos na coordenação das campanhas para a Ação da Cidadania. Mas, não tínhamos mais Betinho, será que conseguiríamos produzir e veicular de graça? Conseguimos. Maíra Miguel, Bruno Israel, Marcelo Freitas e claro Antonio Jorge (meu sócio e diretor eterno do Grupo de Mídia do RJ) formaram a equipe de trabalho. Luis Erlanger na Globo, foi quem liberou por duas vezes a veiculação na Globo, onde demos início à campanha que foi apresentada pela primeira vez no auditório da Firjan com a presença da Miriam Leitão e uma negra que emocionou toda a plateia contando sua saga para comprar uma roupa branca num shopping para a virada do ano. Ninguém tinha o tamanho dela até que uma vendedora deixou que experimentasse, mas pediu por favor que não sujasse a blusa!!

Não tínhamos redes sociais. (perdão à produtora porque não lembro seu nome, mas fica meu eterno agradecimento).

Fomos para as ruas fazer as entrevistas. Na verdade, foram 300 entrevistas no Rio, em Salvador e em Porto Alegre. Filmávamos a resposta a uma simples pergunta que foi capaz de furar a bolha: Onde você guarda seu racismo? Uma das respostas foi “no bolso” ... não aguentei ver os negros andando de limusine nos EUA! Foi uma conversa muito especial naquela tarde.

A campanha, além de veiculação nas emissoras de TV, pioneiramente em 2004 lançou um site: Diálogo contra o racismo, onde as pessoas entravam e se manifestavam. Contaram histórias que me chocavam e assim pude começar a aprender muito sobre o racismo. Sempre ao lado das 40 ONGs coordenadas pelo Ibase, por Fernanda Carvalho, que foi a grande companheira dessa viagem. Na segunda fase da campanha produzimos spots com as melhores histórias, (retiradas do site) e sempre com personagens reais. Não tenho dúvidas que essa campanha deu início a muitas transformações e que o movimento negro perseverantemente conquistou novos espaços. Nem cotas tínhamos naquela altura. Novo espaços são conquistados todos os dias.

A querida Flávia Oliveira, jornalista, fez o artigo para o jornal O Globo, me lembrando dessa história e acabou fazendo um freelancer de publicitária. Criou o que poderia ser a retomada da campanha hoje: QUANDO VOCÊ LIBERA SEU RACISMO? Sim, porque grande parte da população já foi alfabetizada no racismo nesses últimos tempos. Muitos guias de letramento circulam nas empresas, listas de livros, as redes sociais listam expressões que usamos sem crítica, apenas por hábito, carregadas de racismo. Muitas organizações e empresas sofrem crises com a "liberação" do racismo, "sem querer".

Precisamos e podemos refletir mais e aumentar nossa consciência sobre o racismo. Você toparia falar sobre quando você deixou seu racismo escapar? Alguém aí pode ajudar a criar uma campanha na rede que apenas estimule as pessoas a contarem suas histórias? Não estou ativa no mercado publicitário nesse momento, mas a oportunidade está aí.

Cada um de nós pode gravar algo que deixou escapar. Não podemos deixar escapar o racismo. Ele é o mal maior. Não podemos matar nossos jovens nas periferias... é urgente manter essa nossa imensa reserva de talentos! Sinto que caminhamos e o movimento negro nos enche de bons exemplos de força e determinação para a luta. O caminho do horror foi longo... vamos levar algum tempo para mudar totalmente, não podemos esmorecer. Flávia Oliveira está certíssima: Quando você libera seu racismo?

Grata Flávia por liberar minhas lembranças.







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21/11/2023 12:00
Nádia, se em duas décadas pouco se evoluiu, temos que seguir com o debate em ampla escala, em todas as mídias possíveis.

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