O número de dias com temperaturas excessivamente elevadas tem aumentado significativamente em todas as regiões do planeta como consequência das mudanças climáticas globais induzidas pela ação humana. Além do aumento da frequência, duração e extensão das áreas afetadas, cada vez mais estes fenômenos climáticos têm ocorrido de maneira simultânea a outros eventos extremos, como secas e incêndios florestais de grandes proporções. Além dos diversos impactos ambientais, sociais e econômicos, as ondas de calor têm sido associadas a milhares de mortes em todo o mundo.
O artigo “Twenty-first-century demographic and social inequalities of heat-related deaths in Brazilian urban areas”, investiga a relação entre a ocorrência de ondas de calor (períodos de mais de 3 dias consecutivos com temperaturas médias acima de um limiar específico de cada região) e o aumento nas taxas de mortalidade da população. O estudo foi realizado por pesquisadores da UFRJ, Fiocruz, UnB e Universidade de Lisboa e identificou que cerca de 48 mil mortes podem ser atribuídas a ondas de calor. Analisou dados observacionais de temperatura de estações meteorológicas do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e informações do Ministério da Saúde sobre a mortalidade entre os anos 2000 e 2018 nas 14 maiores regiões metropolitanas do país, onde vivem cerca de 35% dos brasileiros.
Em todas as áreas estudadas, os pesquisadores identificaram um aumento significativo no número de mortes durante eventos de calor extremo, associado principalmente a doenças do aparelho circulatório, doenças respiratórias e neoplasias. Doenças da pele e do tecido subcutâneo, do sistema nervoso e do aparelho geniturinário e outras causas de morte, como transtornos mentais e comportamentais, por exemplo, tiveram aumento significativo no número de mortes em algumas regiões.
Considerado o período estudado, a região metropolitana de São Paulo, que é a mais populosa do país, concentra 14.850 mortes em excesso, atribuídas ao aumento das temperaturas. Quando normalizadas pela população, as regiões do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belém, Cuiabá e Recife apresentaram maiores taxas de mortalidade. Em algumas regiões do norte e centro-oeste as ondas de calor com maior impacto ocorreram nos meses mais secos do ano, que pode contribuir com a hipótese de desastres concomitantes, já que o período mais seco na região norte é o período de aumento de queimadas e incêndios florestais, enquanto no sul, sudeste e nordeste o impacto foi maior durante os meses de verão.
O estudo identificou, pela primeira vez no Brasil, o impacto das ondas de calor de acordo com diferentes grupos etários, de gênero, raça e nível de escolaridade com grande abrangência espacial. Mulheres e idosos foram identificados como os grupos mais afetados por períodos de calor extremo, corroborando com estudos anteriores em outras regiões. Além disso, o incremento de mortalidade entre pessoas identificadas como pretas ou pardas foi maior que o observado entre pessoas identificadas como brancas em 12 das regiões estudadas, principalmente em Belém, Recife, Brasília, Goiânia, São Paulo e Rio de Janeiro. Com relação ao nível de escolaridade, usado como indicador socioeconômico, o impacto foi maior na população com 4 ou menos anos de estudo em relação ao subgrupo com escolaridade superior a 12 anos. O que contribui para a discussão que os eventos extremos não impactam a população de maneira igual.
Os resultados do estudo evidenciam que as mudanças climáticas induzidas pela ação humana têm exacerbado as desigualdades socioeconômicas já existentes no país, revelando aspectos sociais e demográficos importantes para subsidiar a formulação de políticas públicas de adaptação aos eventos extremos nas cidades brasileiras. Em particular, sistemas de alerta precoce considerando o perfil de vulnerabilidade e resiliência dos diferentes grupos populacionais são importantes para estratégias de prevenção e preparação em saúde. Além disso, o artigo reforça que a expansão do Sistema Único de Saúde (SUS) combinada à elaboração e aplicação de políticas efetivas para redução das desigualdades representam um importante passo para mitigação dos impactos das ondas de calor em todos os cenários climáticos futuros.
(*) Estudo financiado pelo edital Inova/Fiocruz de 2021 por uma equipe transdisciplinar.
Djacinto Monteiro dos Santos, Pesquisador de Pós-Doutorado do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil (santos.djacinto@gmail.com)
Renata Libonati, Professora de Departamento de Meteorologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil (renata.libonati@igeo.ufrj.br)