Uma peregrinação ecológica urbana, com 21 performances em diferentes jardins de Manhattan e na orla do Rio Hudson, incentiva a sustentabilidade e mais soluções climáticas
POR VIVIANE FAVER, DE NYC
ESPECIAL PARA PLURALE
O evento, realizado na semana de 11 a 18 de maio de 2024, teve a participação de 500 pessoas que percorreram 18 quilômetros, 50 organizações comunitárias e 21 locais (incluindo 13 jardins) - e que envolveu quase um ano de planejamento, segundo Felicia Young, organizadora e fundadora do evento, diretora executiva da “Earth Celebrations”, organização ativista sem fins lucrativos.
Todos os participantes estavam fantasiados de plantas e animais selvagens – trajes que apontam para as diversas maneiras pelas quais podemos afetar positivamente o clima.
Em cada jardim ou área ambiental por onde o desfile passava, acontecia uma cerimônia de troca de presentes e uma apresentação - que podia ser desde uma pessoa lendo um poema, cantando ao violão ou uma apresentação de dança, por exemplo. Todas as performances, porém, eram ligadas ao tema da sustentabilidade. O Green Oasis, por exemplo, que é um jardim polinizador, acolheu uma apresentação de dança com uma borboleta e uma aranha.
As fantasias e os fantoches foram produzidos em oficinas quinzenais gratuitas, realizadas em março, abril e maio. Todas as roupas e adereços foram feitos com tinta natural de frutas, verduras e plantas.
O desfile reuniu várias bandas que, divididas em diferentes blocos, tocaram ritmos de Nova Orleans, da África Ocidental e do Brasil - que foi representado pela Banda Ginga Pura, um conjunto de percussão brasileira.
Um dos integrantes da banda brasileira é Glenn Jude Healy (FOTO), que participa do desfile desde 1995. O músico conta que foi nesse desfile que conheceu seu primeiro mentor, Ivo Araújo, e que a organização Earth Celebrations conseguiu salvar os jardins de seu bairro (East Village). "Tenho muito respeito, admiração e gratidão por esta organização - revela. - Além do propósito, tocar música brasileira com brasileiros é maravilhoso, porque conseguem ser extremamente calorosos e generosos em compartilhar sua música, conhecimento e cultura de uma forma divertida, para que eu possa aprender sobre os ritmos e me divertir, tudo ao mesmo tempo" – ressalta.
Glenn morou na Argentina em meados dos anos 1990 e viu o Brasil vencer a Copa do Mundo pela TV, junto com um grupo de bateristas brasileiros que desfilaram pelas avenidas de Buenos Aires, que o incluíram e ensinaram a tocar música brasileira. "Visitei o Brasil e fiquei muito emocionado com os ensaios das escolas de samba; não só com a música, mas com a intensidade emocional e com o envolvimento das comunidades".
De volta a Nova York, foi no The Garden Parade que Glenn conheceu seu primeiro mentor e mestre, diretor do Manhattan Samba. "Ele me levou para o Rio de Janeiro no carnaval, por um mês, quando ensaiei nas baterias de diversas escolas de samba, entre as quais a União da Ilha, Acadêmicos do Dendê e Boi da Ilha. Claro que me apaixonei pelo Rio de Janeiro - e voltei a ensaiar e a desfilar todos os anos, durante 15 anos. Nos últimos anos, ensaiei também ensaiei no Salgueiro, na Grande Rio e na Mocidade Independente de Padre Miguel. Tocar uma música excelente, no Sambódromo, com uma bateria top, com um grande puxador e com 90 mil pessoas cantando junto, é algo único e incrivelmente poderoso. Mas os ensaios são especiais. Em ambientes comunitários muito humildes, aprendo muito musicalmente, inclusive com as crianças. E também faço amizade com três ou até quatro gerações da mesma família, que me tratam como família. Impossível descrever com precisão o que a gente sente."
Uma das participantes da banda, a moradora do Harlem Jaye Michaels (FOTO), participou pela primeira vez do desfile tocando um instrumento na banda. "Minha esperança é fazer com que as pessoas entendam que as soluções para as mudanças climáticas têm prioridade."
Jaye conta que, com seu envolvimento na causa, tem a chance de aprofundar sua ligação com o mundo natural no ambiente urbano - e aprender mais sobre ações em soluções climáticas, ecossistemas urbanos sustentáveis e sobre a importância dos esforços locais para enfrentar os desafios climáticos globais e urbanos.
A mulher por trás do evento
Felicia Young (FOTO), fundadora da organização sem fins lucrativos Earth Celebrations, cresceu na cidade de Nova York. Estagiou no Metropolitan Museum of Art quando tinha 16 anos, treinando crianças de 11 anos para fazer passeios na Ala Africana do Met. Frequentou a faculdade na década de 1980 e se formou em História da Arte. Depois de algum tempo longe de Nova York, Felicia voltou e acabou indo morar na mesma rua do que já foi o Jardim do Éden, criado por Adam Purple e destruído pela Prefeitura em 1986.
"Em 1991, havia quase 60 jardins no Lower East Side. Esses jardins foram criados por moradores que limparam terrenos baldios cobertos de entulho, que vinham sendo negligenciados pela cidade desde as décadas de 1960 e de 1970. Os moradores cultivaram mais de 500 lotes de propriedade do município por toda a cidade, plantando árvores, flores e cultivando hortas. Esses espaços tornaram-se centros comunitários e culturais ao ar livre, salas de aula de ciências ambientais e teatros para festivais e para a programação comunitária, cultivando também uma cultura positiva e de afirmação da vida, juntamente com espaços verdes abertos e vitais.
- Percebi que o destino do Jardim do Éden poderia, potencialmente, acontecer com todos esses magníficos jardins. Estendi a mão para minha vizinhança: jardineiros locais, artistas, jovens, escolas, igrejas e centros comunitários. Isso foi no período anterior à Internet e aos telefones celulares, quando era necessário comparecer pessoalmente aos lugares para se conectar com as pessoas em reuniões no jardim, nas reuniões da igreja e em eventos comunitários. Naquela época, ninguém poderia saber que uma reunião aconteceria, a menos que percorresse cada quarteirão e examinasse cada cerca, em busca de um panfleto.
Então eu apareci e disse às pessoas: - Tive uma ideia: poderíamos fazer um grande desfile com dez horas de duração, que percorreria entre 45 e 50 jardins. Faríamos cerimônias e apresentações em cada um deles, contando a história daquele jardim e de suas lutas, e propondo sua preservação."
Felicia colaborou, por muitos meses, com um projeto e concurso de arte público. Ela e seu grupo criaram artes visuais, bonecos de papel maché, fantasias, performances, dança, música, poesia e cerimônias. Todos os centros comunitários se envolveram. Os professores criavam visuais e figurinos em suas salas de aula e os jardins organizavam oficinas de artes. Os artistas se apresentavam voluntariamente; eram, em sua maioria, membros de longa data da comunidade latina e afro-americana, além de outros artistas internacionais que, naquela época, ainda permaneciam no East Village. No primeiro ano, pelo menos 1.500 pessoas participaram do desfile.
A partir dessa primeira iniciativa, as pessoas começaram imediatamente a planejar o próximo desfile. - No ano seguinte, o Teatro da Cidade Nova nos ofereceu espaço gratuito, conta Felicia, que transformou o esforço comunitário numa organização sem fins lucrativos e conseguiu um espaço permanente no Centro Comunitário da Sexta Avenida, em 1994.
No mesmo ano, convocou uma reunião pública na Igreja de Santa Brígida para explorar diferentes opções de preservação de jardins. A partir disso, ela e seu grupo de voluntários formaram a Coalizão de Preservação de Jardins do Lower East Side, para trabalhar em busca de soluções. Os voluntários passaram então a se reunir mensalmente e formar comitês.
"Desenvolvemos esse projeto criativo anual, que envolvia todos os setores na criação das peças de arte visual para o desfile. Em seguida, recorríamos aos métodos de organização mais tradicionais: escrever cartas, ir às reuniões do conselho comunitário, comparecer às audiências de planejamento urbano na Prefeitura, entre outras ações. Acho que a fusão desses métodos foi realmente poderosa, mas se não tivéssemos o componente artístico, a organização poderia ter fracassado. Foi um processo divertido e positivo, que reforçou a solidariedade para com as pessoas e fortaleceu a determinação da comunidade."
Essa coligação popular abrangeu toda a cidade quando, em 1996, o então prefeito Rudy Giuliani manifestou a intenção de vender e desenvolver mais de 800 jardins em Nova Iorque. Felicia e seus colegas contrataram jardineiros no Harlem, no Upper West Side, no Bronx e no Brooklyn e disseram: "Estamos nos organizando; formamos uma coalizão, deveríamos nos reunir". Mais de 200 pessoas compareceram ao escritório da Earth Celebrations na Sexta Avenida e formaram a Coalizão para a Preservação de Jardins da Cidade de Nova York, que agora se chama Coalizão de Jardins Comunitários da Cidade de Nova York. Felicia administrou essa coalizão nos anos seguintes. Mais participantes eleitos aderiram, juntamente com a atriz Bette Midler e seu Projeto de Restauração de Nova York - que, juntamente com o Trust for Public Land e outros filantropos, doaram 4,2 milhões de dólares. Seus esforços finalmente levaram à preservação de centenas de hortas comunitárias em toda a cidade de Nova York.
Em 2002, o recém-eleito prefeito Bloomberg transferiu quase 200 jardins para o Departamento de Parques, onde permanecem temporariamente protegidos.
Felicia continuou a realizar o desfile por mais três anos, até 2005. Foram 15 anos de um projeto artístico de organização comunitária que construiu e consolidou um esforço local para a preservação de jardins - e, em seguida, formou uma coalizão que se estendeu a toda a cidade, e que impactou a política de preservação. Hoje os jardins assumem um novo papel, como parte de um plano de sustentabilidade ecológica. Após o furacão Sandy, o Lower East Side foi devastado por inundações. E os jardins que foram preservados mostram que podem ajudar a reduzir os impactos de inundações, tempestades e poluição – coisas que ocorrem com frequência cada vez maior, devido às alterações climáticas.
Uma doação federal de US$ 2 milhões foi concedida ao projeto Gardens Rising, para projetar e implementar infraestrutura verde nos 47 jardins. É um plano para a resiliência climática e para a sustentabilidade urbana, baseado em 50 anos de trabalho dos residentes locais que cultivaram e preservaram estes jardins – um ato de revitalização urbana. E que pode ser replicado e cultivado em muitos bairros urbanos.
Dos jardins para os rios
Felicia Young não parou por aí. "Em 2005, eu disse: 'Ok, dediquei 15 anos da minha vida; os jardins estão seguros. Tive minha filha em 2004 e, quando ela era pequena, costumava levá-la ao Parque do Rio Hudson - que era marrom, poluído e praticamente inacessível. Mas depois do 11 de setembro, o rio foi despoluído. Então, olhei para ele e tive a visão de uma dança de barcos. E disse: 'É isso! Eu adoraria chamar a atenção para o que está acontecendo aqui no rio."
Foi então que Felicia começou a conversar com diferentes grupos de trabalhadores da área, entre os quais o Hudson River Park Trust e o River Project. E descobriu que essas organizações estavam realizando programas de criação de ostras, para limpar organicamente o rio; e que cavalos-marinhos estavam se reproduzindo na Christopher Street.
"Propus um desfile em toda a seção de Lower Manhattan. Acabei reunindo 50 parceiros comunitários. O desfile teve 13 paradas ao longo da orla; em cada uma delas realizamos cerimônias para homenagear os administradores do rio - representantes das organizações fluviais e administradores do rio, que usavam mantos feitos por crianças, em oficinas específicas. Recrutei vários grupos educacionais que realizam passeios de barco, pranchas de paddle e clubes de caiaque, juntamente com voluntários da Harbor School e da Stuyvesant High School, para participar. O rio já estava em modo de restauração, não no modo de crise em que os jardins se encontravam, lá atrás; então era um ponto de impacto diferente. Tratava-se de construir o envolvimento da comunidade em prol da revitalização do rio e das margens, que agora estavam renascendo."
Com todos os horrores que estamos enfrentando, é incrível como as pessoas estão colaborando e se unindo – destaca. Segundo Felícia Young, depois de criar essas conexões, o trabalho avança de forma diferente. "Quero dizer, estou zangada com a situação atual, todo mundo está” – diz Felicia. “Mas temos que, de alguma forma, transformar positivamente essa raiva. A arte pode fazer isso; ela nos leva a um novo lugar, porque sabemos que estamos fazendo algo realmente criativo. Acho que isso é o que está acontecendo agora, em grande escala. Porque tudo – a democracia, os direitos civis, a nossa saúde, o ambiente – tudo com que deveríamos nos preocupar está sob ataque neste momento. Isso vai além das linhas políticas. Portanto, temos de esperar - uma vez que se trata de um ataque em tantas frentes e em tantos problemas -, que as pessoas se unam. E acho que estamos vendo isso. É uma questão de nossa saúde, nossa vida e nosso futuro."