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“Tarsila, a brasileira”: musical requintado com olhar genuinamente brasileiro

Mais brasileiro impossível, o musical “Tarsila, a brasileira” – sonho que a atriz, cantora e produtora Cláudia Raia nutriu e alimentou por dois anos, entre a gravidez, o parto recente e o período da pandemia – é uma epifania de profissionalismo, criatividade e fidelidade ao universo da mais famosa pintora brasileira. Jarbas Homem de Mello e grande elenco se somam ao time robusto da produção de cena, como a orquestra de 12 músicos e também a equipe off-palco.

Por SÕNIA ARARIPE e MAURETTE BRANDT, de Plurale

Fotos de FELIPE ARARIPE, de Plurale

Do Rio de Janeiro (RJ)

Na tela gigante, o perfil em preto-e-branco de Cláudia Raia na pele de Tarsila do Amaral, a mais celebrada das pintoras brasileiras, já cria um impacto considerável. A orquestra, com seus 12 experientes músicos, cortava o ar e as expectativas gerais com as sonoridades características que antecedem o início do espetáculo. O público lotou a sala de espetáculos Vivo Rio no último fim de semana para assistir à curtíssima temporada carioca, de apenas cinco dias de apresentações.

O programa distribuído na entrada, em meio ao frisson e ao burburinho da chegada do público, dá a dimensão desta superprodução. Nas páginas do livreto – que segue o mesmo padrão dos musicais da Broadway – estão não citados apenas os artistas e músicos, mas também a equipe inteira de cena e off-cena. A produção tem cheiro de Broadway, ritmo de Broadway, mas, felizmente, é um dos musicais mais genuinamente brasileiros dos últimos tempos.

Além da orquestra ao vivo, pudemos conferir também os incríveis efeitos visuais, som estéreo da melhor qualidade, figurinos impactantes, carro de época entrando no palco com os artistas, escadarias ... e a arte da pintora paulista que ganhou o mundo encadeando o tempo todo a narrativa. Que espetáculo! Que performance! O Vivo Rio parece ter-se transformado, especialmente para esta temporada, em um daqueles vetustos teatros do lendário quarteirão de Nova York, com a vantagem da modernidade e da qualidade de entrega. Sem mesas, o público se acomodou confortavelmente em cadeiras que garantiam excelente visão e audição de qualquer ponto.

Sob a direção de José Possi Neto, um elenco de primeira enche o palco de Brasil, de música, de beleza. E, é claro, Cláudia Raia e Jarbas Homem de Mello, ambos deslumbrantes. Se a Tarsila de Cláudia Raia é praticamente uma encarnação, Jarbas – no papel do escritor e bon-vivant Oswald de Andrade – por vezes chega a roubar a cena, de tão completo que é. E, para completar, a presença fantástica, no palco, dos melhores amigos da dupla: o escritor Mário de Andrade (Dennis Pinheiro), o poeta e jornalista Menotti Del Picchia (Ivan Parente) e a pintora Anita Malfatti (Keila Bueno).

Cláudia Raia na melhor forma: um trunfo contra o etarismo

A atriz e cantora - mãe recente e em admirável forma, depois de dois filhos já adultos - derruba no palco, com todo brilho, o mito do etarismo. Em recentes entrevistas, contou que precisou se “despir” da exuberante e extrovertida Cláudia Raia para tornar-se Tarsila, a brasileira. A pintora, exoticamente linda para os padrões da época, tinha um temperamento mais introvertido, falava baixo - e até era um pouco corcunda, postura que Cláudia adotou com profunda verdade.

São patentes a brasilidade e o rigor histórico que envolvem todo o espetáculo. A vida e a obra de Tarsila do Amaral parecem pulsar para o público, como se a própria pintora quisesse ver sua história mais bem compreendida pelos brasileiros.

A narrativa atravessa momentos marcantes da arte e da vida brasileira e mundial da época. Toda a trilha sonora é original e foi concebida especialmente para o espetáculo. Isso sem falar na forte presença de uma orquestra impecável e de um corpo de baile da melhor qualidade, além dos atores e cantores em cena.

Como produtora cultural, Cláudia Raia, há anos nesta lida, também arrasa: 10 grandes grupos empresariais, nacionais e internacionais, patrocinam o empreendimento cultural por meio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura. Aliás, no final do espetáculo, com todo o elenco reunido para receber os aplausos de uma plateia literalmente de pé, Cláudia puxa o coro a favor da relevância da Cultura para o Brasil e para qualquer nação. E então explica, com toda emoção e solenidade que o momento exige, o sentido e o valor da Lei Rouanet. Mais uma vez, os aplausos explodem. O elenco canta em música sob medida para a ocasião com nomes de outros tantos brasileiros relevantes para a Cultura - Fernanda Montenegro, Sebastião Salgado, Tony Ramos, Grande Othelo e por aí vai. A protagonista ainda revela, quase em tom de confidência, a alegria de ver, na plateia, ninguém menos do que outra diva da teledramaturugia e amiga de toda uma vida: a atriz Glória Menezes. Mais aplausos do público, como não poderia deixar de ser. Enfim, uma tarde alegre e emocionante!

A produção de “Tarsila, a brasileira” envolve um time com dezenas profissionais experientes em todas as áreas do espetáculo: equipe de palco, visagismo, som, luz, figurinos, projeção, imagens, cenografia, objetos de cena, preparadores para atores e cantores... Um mundo à parte! Para vocês terem uma ideia, a produção das perucas contou com três peruqueiros especializados para criá-las e outros seis para confeccioná-las!

Cenografia, objetos e detalhes ajudam a contar a história e trazem o espectador para dentro da cena

Se a cena é muito grande, maior é o nosso espanto e alegria por estar diante dos grandes artistas que faziam o Brasil explodir em talento e criatividade, no início do século passado. Como assim, estamos na sala de estar da grande Tarsila do Amaral!? Não, ela não está numa foto distante e muda, escondida num livro: desce a escada do luxuoso apartamento da família em São Paulo, com dignidade e delicadeza. E nos recebe! Nos dá o direito de partilhar sua intimidade, ao lado dos amigos fieis. Permite que ouçamos suas dúvidas e inseguranças, seus anseios, sua verdade. É uma pessoa real, cercada de pessoas reais. Pessoas que transformaram a arte brasileira, e que ainda assim se apresentam aqui, inteiras, na nossa frente.

Nenhum livro de história poderia nos falar de Tarsila do Amaral com esta verdade, com esta entrega. Até aqui sabíamos, sobre Oswald de Andrade, o que lemos em algum lugar, ou o que ouvimos falar: agora é ele mesmo quem se revela, sem pudores ou limites. Anita Malfatti também fala, reclama, contesta, se revolta, remói suas tristezas. Mário de Andrade desfia seus sonhos e Menotti Del Picchia suas picardias.

Alguém pode dizer que são apenas personagens, mas não. Estão encarnados diante de nós; e suas vozes revelam um Brasil que não podemos mais presenciar. Suas angústias ou alegrias nos falam do que fomos, mas também do que poderíamos ter sido, se aquele Brasil do início do século XX, ou mesmo aquele mundo todo, tivessem seguido o curso natural que prometiam seguir. Podemos, nestes instantes únicos que o espetáculo nos proporciona, estar lá e cá, compartilhando as esperanças daqueles artistas que queriam, intensamente, um Brasil maior e melhor para os brasileiros.

Seguimos com eles, alimentados por músicas e letras criadas especialmente para ajudá-los a reviver suas vidas diante de nós. É uma trilha que explica o Brasil, que inspira o Brasil, que poderia muito bem ganhar as ruas e os corações e mentes das pessoas comuns. No palco e pelas mãos de Tarsila, essa brasileira tão profunda e incomum, tão sofrida e resistente, podemos sonhar com quem seríamos, se fosse diferente, e também nos reconhecer como somos, diante do que vivemos até aqui.

A cenografia é não só janela para o mundo de Tarsila, de Oswald, de Mário ou da Semana de Arte Moderna de 22: em seu deslumbramento, é um passado que resiste, porque não acabou dentro da gente. Cada ornamento, cada cortinado, cada peça de mobília ou cada lustre, cada pincelada de Tarsila, de Anita, cada linha de Macunaíma, cada cena do Rei da Vela, tudo está um pouco dentro de nós, em lembrança ou em perspectiva.

A beleza de Tarsila/Cláudia em figurinos deslumbrantes é também um signo que nos mostra as entranhas daquela mulher que tanto tinha a oferecer, na vida privada e também na arte. Uma fortaleza que suportou rigores e perdas inimagináveis - e ainda assim resistiu, em nome do profundo amor que, desde pequena, nutria pela gente simples do seu país.

Graças a um espetáculo inesquecível, Tarsila, essa brasileira tão ampla, agora pode ser um pouco mais de todos nós. Mérito de um sonho de Cláudia Raia e de Jarbas Homem de Mello - sonho este que contagiou José Possi Netto e todos os artistas, produtores, artesãos e profissionais que se juntaram para construir um espetáculo que, com sua verdade e beleza, só faz impregnar, de belas esperanças, toda a gente - brasileira ou não - que tem o privilégio de estar diante dele.

Anotem aí! Se “Tarsila, a brasileira” passar pela sua cidade, não percam. É a história, com H maiúsculo, de alguns dos principais nomes da cultura brasileira moderna. Imperdível!







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1 comentário | Comente

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Vania Absalão |
O espetáculo é um primor e o texto da Sônia Araripe e Maurette Brandt é preciso, belo e nos transporta para uma obra exuberante com perfeição. Parabéns Sônia e Maurette por nos guiar por essa trilha desta empreitada artística maravilhosa. Viva a cultura, viva a arte, viva o teatro!

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