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PLURALE EM REVISTA 86 - ESPECIAL CRISE CLIMÁTICA - Reconstrução das cidades gaúchas

Por Professor Marcus Quintella , da FGV Transportes (*)
Em 11 de maio de 1941, a edição nº 130 do jornal A Época, de Caxias do Sul, trazia a seguinte manchete: “O Rio Grande do Sul vive os dias mais angustiantes e catastróficos da sua história – as inundações assumiram proporções verdadeiramente avassaladoras”.
REPRODUÇÃO DE JORNAL A ÉPOCA, DE 1941

Essa enchente, até então considerada como a maior de todos os tempos em terras gaúchas, ocorreu também no início de maio; durou 22 dias, atingiu 425 dos 497 municípios existentes, principalmente Porto Alegre. Contabilizou cerca de 1,5 milhão de pessoas diretamente afetadas, deixou 70 mil desabrigados e provocou muitas perdas de vidas humanas.

Antes de 1941, já tinham acontecido outras grandes inundações em Porto Alegre: outubro de 1873; junho de 1897; agosto de 1905; maio a setembro de 1912; setembro de 1914; setembro de 1926; e outubro de 1936. Após 1941, houve enchentes importantes em 1967, 1984, 2002 e 2015, dentre tantas outras menos destrutivas.

Segundo Cássio Arthur Wollmann, Professor Doutor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Maria, em artigo publicado em 2014 sobre as enchentes no Rio Grande do Sul do século XXI, as inundações no estado constituem-se em fenômenos naturais já conhecidos pela população - em especial aquelas que habitam os vales dos principais rios sul-rio-grandenses. O artigo enfatiza que a gênese das enchentes no Rio Grande do Sul, em mais de 90% dos casos, está condicionada à participação das correntes perturbadas de origem polar (frentes polares). E ainda das variações do eixo da frente polar, tais como as frentes estacionárias, quentes, frias e ciclones, que podem ter maior ou menor participação na gênese das enchentes, mas todos derivam de um mesmo sistema atmosférico. Apenas em alguns casos há a participação de correntes perturbadas de origem tropical, como as instabilidades tropicais. O professor constata, ainda, a influência dos eventos de “El Niño” sobre o Rio Grande do Sul, em determinados anos, cujas origens estão ligadas ao aquecimento superficial das águas do Oceano Pacífico Central, que causa forte influência sobre os totais pluviométricos do estado, favorecendo a formação de enchentes.

FOTO DE GUSTAVO MANSUR - SECOM/ RS

Mesmo com um histórico trágico de enchentes na memória do povo gaúcho, somente 30 anos depois da catástrofe de 1941 - entre 1971 e 1974 - foi construído um muro de proteção para Porto Alegre, conhecido como Muro da Mauá, com uma estrutura de concreto de três metros de altura, 2,6 km de extensão e dotado de 14 comportas de proteção, e que faz parte de um sistema de contenção de águas. Atualmente, o sistema que protege a cidade contra grandes enchentes é composto pelo Muro da Mauá, 68 quilômetros de diques e 19 casas de bomba. De acordo com a prefeitura, sem esse sistema de proteção os efeitos seriam ainda mais devastadores, visto que a situação atual pode ser considerada muito pior do a enchente de 1941.

O momento não é de apontar culpados para a pouca manutenção e para a escassez de investimentos públicos no quinquagenário sistema de proteção de Porto Alegre. Depois que as águas voltarem ao nível normal, esse valente sistema precisa ser corrigido, mantido, aprimorado e ampliado, para neutralizar ou, no mínimo, minimizar os efeitos das futuras enchentes.

O planejamento da reconstrução da cidade precisa ser iniciado imediatamente, mesmo antes das águas baixarem; deve priorizar a prevenção e contar com a participação das populações atingidas. A recuperação após um desastre é complexa e pode demorar muitos anos, mas pode ser também uma enorme oportunidade para o aperfeiçoamento dos sistemas de prevenção de acidentes naturais e para a melhoria da qualidade de vida dos habitantes das cidades gaúchas.

Há quase vinte anos, em 2005, a cidade de Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, foi devastada pelo feroz furacão Katrina, quando os diques da cidade foram rompidos pelos ventos de mais de 200 km/h, deixando um rastro de mais de 1,8 mil mortos e um prejuízo estimado em US$ 100 bilhões. Dez anos depois da tragédia, a cidade do jazz renasceu das cinzas, teve seus diques reconstruídos e reforçados - e continua enfrentando as grandes temporadas de furacões, agora mais forte e prevenida.

Robert Olshansky, Professor Emérito de Planejamento Urbano e Regional da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, estudou e participou ativamente do plano unificado de recuperação de Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina. Esteve presente nas ruínas dos terremotos que destruíram Kobe, no Japão, em 1995, e o Haiti, em 2010; presenciou também os estragos do tsunami que arrasou a Indonésia, em 2004. Em entrevista à Folha de SP, Olshansky enfatiza que a tarefa de reconstrução, após um desastre como o do Rio Grande do Sul, exige planejamento e dinheiro conectados entre si. Mas afirma que nunca viu um lugar no mundo que tenha conseguido colocar em prática uma reconstrução dessa monta de maneira efetiva. Por isso, o professor defende que a estratégia de reconstrução seja feita de baixo para cima, porque são as comunidades locais – moradores, empresários, prefeituras, agências, organizações não-governamentais etc. –, que possuem melhor conhecimento para isso.

Como foi relembrado acima, esse problema de inundações no Rio Grande do Sul é recorrente - e amplamente conhecido pelos governos municipais, estadual e federal. Portanto, não se pode mais admitir uma reconstrução que não contemple grandes investimentos em sistemas de prevenção, assim como a elaboração de um plano transparente, didático e público de contingência para as futuras enchentes, tornados e outros eventos climáticos sem contar com ações de manutenção permanente desses sistemas.

Insistindo no tema da prevenção, lembrei-me de um professor de hidráulica do meu tempo de estudante de engenharia civil, lá na década de 1970, que ensinava a importância do gerenciamento dos recursos hídricos – ou seja, mais precisamente, o controle dos caminhos por onde as águas passam. Trata-se da engenharia da água, que lida com rios, estuários, lagos e bacias hidrográficas, sobre os quais não temos controle algum, no tempo e no espaço. O caso de Porto Alegre é de engenharia hídrica na veia.

Nesse sentido, a professora Franciele Zanandrea, Doutora em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta diretrizes que devem ser contempladas no plano de recuperação do estado: “As cidades precisam prezar pelo gerenciamento adequado das águas e dos resíduos, além de optar pelo uso de soluções baseadas na natureza, com o intuito de minimizar os impactos negativos do crescimento urbano. Por isso é importante o investimento em infraestruturas verdes, transporte público e ciclovias, para reduzir a dependência de veículos motorizados e aumentar a resiliência às interrupções causadas por eventos climáticos extremos”. A docente corrobora a posição do professor Olshansky, de que a construção do planejamento de recuperação é uma oportunidade para ouvir a população e estimular a participação coletiva.

A partir da experiência da reconstrução de Nova Orleans, a professora Mary Comerio, especialista em desastres da Universidade da Califórnia, estima que 25% das verbas oficiais devem ser gastas em serviços de emergência de limpeza, 25% em reconstrução de infraestrutura e 50% na reconstrução de casas e edifícios.

Dessa forma, entendo que a reconstrução das cidades gaúchas deve ser iniciada pela elaboração de um planejamento sistêmico, cuja espinha dorsal tenha por base a infraestrutura de transportes, visto que todas as atividades humanas dependem de algum modo de transporte, 24 horas por dia, todos os dias. A reconstrução de uma cidade certamente não é uma ciência exata, pois tudo tem início num cenário caótico; mas, sem dúvida alguma, as rodovias estaduais e federais do estado precisam ter seus tráfegos restabelecidos, assim como as vias urbanas de Porto Alegre e demais municípios. O trem metropolitano da Trensurb precisa voltar a operar para atender a população, visto que liga a estação Mercado, no centro de Porto Alegre, ao município de Novo Hamburgo, passando pelos municípios de Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e São Leopoldo. O transporte público por ônibus também é fundamental para a mobilidade urbana das populações.

Por fim, os governos gaúcho e federal, com a ajuda da iniciativa privada, precisarão construir habitações, unidades de saúde, escolas, centros de distribuição, comércios e outros equipamentos urbanos - que dependerão, sem dúvida alguma, de infraestrutura de transportes, para que os insumos, máquinas, equipamentos, mercadorias, medicamentos etc., possam chegar aos seus destinos finais. A reconstrução imediata da infraestrutura de transportes, acompanhada das obras de prevenção contra futuras enchentes, deve ser o marco zero para o restabelecimento da vida urbana de Porto Alegre e de todos os outros 424 municípios afetados pelas enchentes. Boa sorte, bravo povo gaúcho!

(*) Marcus Quintella é Colunista de Plurale, Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, Mestre em Transportes pelo IME, Pós-Graduado em Administração Financeira pela FGV e engenheiro civil pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente é Diretor da FGV Transportes e Editor-chefe da Revista Brasileira de Transportes – RBT.







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