Mencionar a enchente que assolou o rio Grande do Sul e Porto Alegre em 1941 como “prova” de que esses fenômenos sempre aconteceram revela ignorância dos fatos. É o mesmo que dizer que uma nova era glacial começou baseando-se num único inverno rigoroso.
Quando arrancamos colossais quantidades de combustível fóssil das entranhas da terra, como carvão, petróleo, gás e os queimamos para produção de energia, lançamos outras colossais quantidades de gás carbônico na atmosfera, todos os anos, sem parar. Só em 2020 foram mais de 40 bilhões de toneladas.
O teor de gás carbônico na atmosfera é ínfimo, de apenas três décimos de milésimos do total da atmosfera, proporcional ao volume de um copo em uma caixa d’água de mil litros. Não é à toa que já tenhamos conseguido a proeza de aumentar em 50 por cento o teor de gás carbônico na atmosfera, no ar que respiramos!
Se o gás carbônico é o principal gás causador do efeito estufa e se a humanidade conseguiu aumentar o teor desse gás em inacreditáveis 50 por cento, não resta dúvida de que temos culpa no cartório, sim! Somos nós, atualmente, em termos de história geológica do Planeta, os responsáveis pelo atual aumento da temperatura do ar e dos oceanos, com consequente aumento da evaporação, da umidade no ar, da força dos ventos, furacões, inundações, secas, degelo, aumento do nível dos oceanos, morte dos corais e tudo mais que compõe o quadro das atuais mudanças climáticas e ambientais, como nos ensina Carlos Nobre.
Como se isso não bastasse, também transferimos para a atmosfera outras colossais toneladas de gás carbônico que estavam estocadas no material foliar e lenhoso de florestas e demais ecossistemas que temos destruído de roldão, com o avanço daquilo que chamamos, eufemisticamente, de civilização moderna.
As centenas de milhões de cabeças de gado que criamos em pastagens - onde antes havia florestas e outros ecossistemas naturais que estocavam carbono e equilibravam as chuvas, com seus arrotos e flatulências - contribuem com outros milhões de toneladas; e não de gás carbono, mas de gás metano, 25 vezes mais poderoso que o carbono, para causar o efeito estufa!
Tudo para obter carne de gado, que contribui com apenas dois por cento das calorias ingeridas pela humanidade (no Brasil a média é maior), mas que, para produzi-las, ocupamos uma área gigantesca: 60 por cento das terras agrícolas do planeta, ensina-nos David Attenborough.
As florestas - principalmente as tropicais, de folhas largas - funcionam como verdadeiras esponjas, com capacidade de reter, nas copas e na serrapilheira, e absorver nos seus solos, praticamente qualquer quantidade de chuva.
É muito raro ocorrer escoamento superficial em solos de florestas, coisa que acontece com a maioria das chuvas que caem em pastagens e em muitas lavouras. Quanto mais destruirmos florestas e demais ecossistemas naturais - e quanto menos soubermos trabalhar com sistemas agropecuários amigos da água e do equilíbrio ecológico - ocorrerão mais enchentes e, por falta de estocagem de água no solo, também mais secas, nos períodos de estiagem.
Em ecossistemas naturais não florestais, como os campos de cima da serra, a vegetação natural retém gigantescas quantidades de água das chuvas. Já no solo impermeável das cidades o efeito é extremo: choveu, escorreu - e se forte choveu, enxurrada deu.
Este autor tomou centenas de medidas de infiltração de água nos solos no Vale do Itajaí – SC, sob diferentes coberturas vegetais; e o resultado foi que, enquanto o solo de antigas pastagens leva muitas horas para infiltrar um litro por decímetro quadrado, no solo da floresta bem preservada isso acontecia em questão de segundos!
Num experimento urbano na cidade de Blumenau, conseguimos transformar os pequenos espaços de uma calçada, ao redor das árvores, numa miniatura de solo de floresta: e o resultado, depois de dois anos, foi uma capacidade de infiltração semelhante à de uma floresta nativa.
O volume de chuva que caiu no solo gaúcho foi grande demais para a preservação ambiental fazer a diferença, diriam alguns. A estes, podemos responder com a analogia da toalha: vinte atletas dispõem de uma única toalha para se enxugar no vestiário, depois do jogo. Claro que, até chegar a vez do último atleta, a toalha pouco enxugará. Porém, se essa toalha for de fato de boa qualidade, ela vai fazer a diferença, assim como uma boa gestão da paisagem também fará a diferença, por mais que chova.
Dados de erosão em diferentes usos de solo são velhos conhecidos da literatura. Numa floresta bem conservada, as chuvas conseguem arrancar 1 a 4 quilos de material sólido por hectare por ano; ou seja, praticamente nada. Já em um algodoal, por exemplo, principalmente se for mal manejado, a erosão chega a 38 toneladas por hectare/ano! Em movimentações de terra sem critérios, como vemos aos milhares por aí, essa quantidade ainda é maior.
Em nossas cidades e campos, ainda precisamos melhorar muito os cuidados para evitar a erosão. Não é à toa que a maioria dos nossos cursos d’água, ante qualquer chuva minimamente volumosa, tornam-se extremamente barrentos, parecendo que neles mais corre lama do que água, e ficam logo assoreados. Obras como dragagens, que muitos governantes logo se apressam em anunciar, são meramente paliativas, diante de tudo o que deve ser feito.
O manejo adequado da paisagem, tanto urbana quanto rural, é fator fundamental no controle das cheias, enchentes, enxurradas, deslizamentos de encostas e inundações. Baixadas alagáveis, pântanos e brejos - sejam minúsculos, pequenos ou grandes - não são lugares para aterros, muito menos lugares para morar.
Há uma verdadeira miríade de ações a serem adotadas, se quisermos de fato minimizar as cheias. Não podemos continuar a jogar dinheiro fora focando apenas em obras estruturais, sem considerar a gestão da paisagem como um todo. Proibir todo e qualquer aterro em banhados e demais baixadas alagáveis é apenas uma, dentre centenas de medidas de gestão de paisagem que, aí sim, junto com as obras estruturais, podem enfrentar o problema.
Temos que aprender a nos adaptar e conviver com as cheias e demais eventos climáticos, mesmo os extremos, minimizando significativamente seus efeitos. Enfim, nunca esquecer que somos parte - e não à parte - da natureza.
(*) Lauro Eduardo Bacca possui Graduação em História Natural pela Fundação Universidade Regional de Blumenau, especialização em Ecologia pela UFRGS, Mestrado em Biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Foi professor nas áreas de Ecologia e Meio Ambiente na Universidade Federal do Amazonas e professor nas áreas de Ecologia e Meio Ambiente na Fundação Universidade Regional de Blumenau até a aposentadoria. Foi Vereador em Blumenau e idealizador do Parque Nacional da Serra do Itajaí (SC).