POR NÁDIA REBOUÇAS, COLUNISTA DE PLURALE
Dia 19 de setembro de 2023 chegou um novo livro da Ação da Cidadania, agora registrando 30 anos da história do que pode ser o maior e mais planejado projeto social brasileiro. Nasceu das ideias de Betinho, um ser especial que chegou por aqui misturando força, fraqueza e consciência do nosso modelo mental velho, escravocrata, vergonhoso e indigno: aquele que nem percebe a fome!
Sim, ouvi isso algumas vezes: “Não acredito na fome, são é um bando de preguiçosos! No Brasil ninguém passa fome!” No entanto, estão aí os dados que mostram as 33 milhões de pessoas que passam fome em todo o Brasil.
Tem a fome das periferias das grandes cidades, tem a fome do campo. Eu sofria quando pensava na fome, quando via o silêncio da fome no rosto de adultos e crianças, quando escutava a sua quietude dolorosa. Tive o privilégio de conhecer Betinho, o sociólogo que sonhava e agia, e que me convidou (ou será que instigou?) a criar campanhas de comunicação, reunindo todos os publicitários que se entusiasmassem e decidissem usar a comunicação para mudar consciências e mover a sociedade para o serviço de acabar com a fome!
Durante mais de quatro anos, a “Campanha Contra a Fome”, como ficou conhecida, foi veiculada gratuitamente pelos veículos de comunicação. Sem qualquer custo, foi planejada, criada e produzida pelos publicitários e profissionais de marketing que formaram um comitê: o Comitê Ideias. A cultura também formou seu comitê e os artistas estão engajados até hoje .
Betinho foi procurar os empresários e conseguiu apoio que também só se multiplica há 30 anos. Nasceram comitês dentro das organizações, ampliando o voluntariado no Brasil. Ativou-se a solidariedade e ela se multiplicou até no lançamento do Balanço Social pelo IBASE, que pela primeira vez sugeria contar as mulheres e os negros na empresa. Naquele tempo ainda não se falava em diversidade. Tudo é um processo, com a Rio 92 e a Ação da Cidadania, lançado por Betinho e Dom Mauro Morelli. Ali se iniciou a transformação que segue hoje sua intensa jornada.
Na época, chegou-se a um número aproximado: 5.000 comitês. Esses comitês sempre foram e são a alma da Ação da Cidadania, sua força de distribuição. Distribuidores de solidariedade.
A campanha mobilizou grande parte da sociedade. Criou-se então uma nova moeda: alimentos não perecíveis. Saímos do mapa da fome em 2014, mas infelizmente voltamos pra lá! Costumo dizer que quantas vezes a fome voltar, mais motivos teremos para vencê-la! Não é simples mudar a cultura de um país; e este é o trabalho que vem sendo feito pela cidadania, nesses tempos que estou por aqui! “O país não vai mudar pela política nem pela economia, mas pela cultura”, já dizia o Betinho.
Hoje, 30 anos depois, aí está a Ação da Cidadania – que, sem abandonar sua essência, inova todo dia, incorporando tecnologias para avançar na sua missão! Visitei as novas instalações da Ação da Cidadania e registrei os muitos avanços. Estão juntas, no mesmo espaço, as três organizações criadas por Betinho: a própria Ação da Cidadania, o IBASE e a ABIA. E, ao lado delas, a semente das várias sementes: o Instituto Marielle Franco.
O grande galpão para armazenar as cestas básicas para o Natal sem Fome ou para outras emergências está lá, pronto para se encher de dignidade contra a fome. A novidade é que muitos passos foram dados na direção do alimento pronto, para os que não têm nem casa para receber uma cesta básica. Estão espalhados pelas calçadas.
Após a pandemia e o pandemônio que nos assolaram, as famílias e os comitês distribuem também o alimento pronto. Passam pela cozinha solidária e seguem a caminho das ruas, com as caixinhas preparadas com comida de verdade e sem agrotóxicos! A preparação acontece numa cozinha solidária com instalações ultramodernas; utilizam alimentos da horta, sem agrotóxicos, plantados e cuidados dentro das novas instalações. Lá ganhei um saco de verdes e, quando abri, agradeci aos céus os perfumes da fartura que hoje a Ação da Cidadania produz.
Os comitês também distribuem solidariedade e educação. Forma-se uma enorme e bem-sucedida roda de aprendizado. Aprende-se um pouco de tudo. Chefs famosos passam pela cozinha solidária, distribuindo receitas e ensinando o aproveitamento de alimentos.
Comida de verdade. Distribuída por gente de verdade, que chega às pessoas que precisam de alimento de verdade. Assim é a Ação da Cidadania.
Se o Betinho, que teve a coragem e a ousadia de visualizar o sonho, estivesse por aqui (será que não está?), certamente estaria espantado com o mundo louco que construímos após sua partida. Estaria estarrecido com a emergência climática, que certamente vai afetar mais os que menos têm; mas estaria orgulhoso por ver as pessoas nas quais acreditou, que efetivamente fazem a diferença! Honraria e agradeceria aos comitês! Teria um orgulho danado do filho do CA (Kiko, diretor executivo da Ação) e de seu filho Daniel (presidente do Conselho da Ação). Ficaria falando com os jovens e vendo a enorme curiosidade deles pelo começo da Ação da Cidadania, há 30 anos.
Eu tenho orgulho do Daniel e do Kiko, jovens comunicadores da organização e dos comitês! Admiro a forma como souberam multiplicar as ações, inovando e criando, de novo e de novo, a Ação da Cidadania! Agradeço por ter vivido essa história.
Que venha outra vez o fim da fome, para que a ação vá dar cabo das outras fomes que também estão aí para ser vencidas! Esses dias no Rio de Janeiro foram um presente! Renovar a esperança sempre! Se puderem, visitem as novas instalações da Ação da Cidadania e renovem seus votos: vamos acabar com a fome no Brasil e espalhar nossos aprendizados com solidariedade. Imaginemos, sem parar, um mundo sem fome!