Por Maurette Brandt, Especial para Plurale
De Paraty (RJ)
Fotos da Editora Record/ Divulgação.
Cheia de beleza e história, a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, em Paraty, ficou lotada de música, emoção e palavras, no dia 11 de outubro de 2024, quando a Orquestra Sinfônica de Paraty, sob o comando do regente Weslem Daniel, recebeu o aclamado maestro João Carlos Martins, o Quinteto Bachiana, o jornalista Jamil Chade, biógrafo do maestro e músico, assim como a pianista paratiense Helena Toledo, que homenageou o maestro João Carlos Martins com uma brilhante execução do prelúdio em Dó Maior, de Johann Sebastian Bach.
João Carlos Martins regeu as Bachianas No. 4, de Heitor Villa-Lobos, e executou solos de piano com o Quinteto Bachiana. Jamil Chade, além de tocar flauta transversa num dos solos do maestro, leu trechos de O Indomável, a biografia que fez de João Carlos Martins. No comando do regente Weslem Daniel, a Sinfônica de Paraty brilhou com o Batuque, de Lorenzo Fernandes, entre outros temas.
O concerto, além de abrilhantar a Flip 2024, faz parte do lançamento da biografia de João Carlos Martins, que, segundo o próprio, a genialidade de Jamil Chade transformou quase num romance. A dupla também integrou a programação da Casa Record, em animada mesa em torno do livro, com direito a concorrida sessão de autógrafos.
Entre a Suíça, Nova York e Paraty – ou entre as reportagens, coluna do UOL, os vários livros editados e os solos de flauta transversa, alguns deles ao lado do maestro João Carlos Martins -, Jamil Chade falou à Plurale durante a Flip 2024, sobre os dilemas humanitários que enfrenta em sua cobertura junto a várias organizações internacionais e sobre os livros recentes, entre os quais esta biografia do maestro João Carlos Martins. Confira os principais momentos desta conversa.
Plurale – As questões humanitárias fazem parte do seu dia-a-dia. Em uma de suas crônicas, você contou uma coisa que nunca consegui esquecer: a história de uma menina que conheceu na Etiópia, com a qual deixou um cartão, e que mais tarde te escreveu uma carta desesperada, pedindo que você se casasse com ela dentro dos costumes muçulmanos, para tirá-la de lá.
Jamil Chade - Tenho isso meio atravessado na garganta – recorda, com o olhar perdido. - Ela me escreveu aquela carta e eu penso nisso todos os dias, todos os dias. E não é só isto; eu me lembro do rosto dela. E me lembro do que aconteceu depois, porque eu fui com aquela carta à Unicef, para tentar achá-la. Claro, era no interior da Etiópia, e não tem, exatamente, uma forma fácil de encontrar. O mais triste é que eu cheguei lá com a carta e a resposta foi, apenas: – Como ela temos muitos milhões – respondeu o atendente, distraidamente, apontando para uma pilha de cartas. – Não tem como encontrar.
Plurale – E você colocou a carta lá?
Jamil Chade - Eu fiquei em choque, porque eu não tinha como encontrar aquela pessoa. E quem tinha recursos colocou a carta numa pilha dos desumanos, dos que não contam. Não contam. Então, talvez se ela fosse de uma nacionalidade que interessasse - ou que contasse - o funcionário poderia ter tido algum tipo de reação, mas não. Aquela menina foi incluída no pacote lá, dos desumanos – e eu querendo saber onde ela estaria, e se estava viva ainda. Fiquei com aquilo dentro de mim e pensei; rapaz, porque é muito difícil que a pessoa se coloque no lugar do outro! Eu acho, entendeu? Mas peguei a carta de volta e falei: - Deixa comigo. Pode deixar; deixa comigo. Eu queria falar isso.
Plurale – Este seu relato me marcou. Pode nos contar um pouco sobre o trabalho que você faz junto à ONU?
Jamil Chade - É assim; eu não trabalho para a ONU. O que acontece é que a ONU disponibiliza espaços onde os jornalistas estrangeiros internacionais podem trabalhar dentro da ONU. Por isso é que eu tenho acesso a essas reuniões todas que eu cito. Olhe bem, o que eu faço é cobrir a ONU como repórter. Não trabalho para a ONU e não tenho nenhum compromisso com eles, inclusive; o que eu faço, muitas vezes, é denunciar o fracasso deles. Então, não há nenhum tipo de vínculo com a organização, nem nada nesse sentido. Eu cubro as atividades da ONU e de toda a estrutura humanitária – ou que, pelo menos, deveria ser humanitária hoje: a Cruz Vermelha, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, as ONGs etc. - e também a ONU.
Plurale - Temos curiosidade de saber como é o seu dia-a-dia; você, a pessoa que você é, que está sempre lá vendo essas coisas... Isso remete a um fotógrafo espanhol, o Gervásio Sanchez – que, como fotógrafo, faz um trabalho bem parecido.
Jamil Chade – Sim, é isso.
Plurale - Então, gostaríamos de saber como você funciona nesse ambiente.
Jamil Chade - Tenho como princípio que, na minha casa, não acontece nada. Então, não posso ficar em casa; é sair pro campo, não tem discussão. Outro ponto que considero muito importante é que, nas redações dos jornais, tampouco acontecem as coisas. Você precisa estar na rua, você precisa estar onde as coisas acontecem, nas salas de reunião inclusive. Aí, não adianta aquele negócio de “ah, esta reunião vai ser transmitida por Zoom”. Então eu vou ficar no meu sofá, tranquilo, assistindo pelo Zoom? O Zoom só mostra o que a câmera está mostrando! Eu não quero saber só o que a pessoa está falando; eu quero saber qual a reação quando aquela pessoa fala. Quero saber como é que os países e como as diferentes delegações reagem àquilo.
Então, o meu princípio é que quero estar sempre dentro dos locais de tomada de decisão. Este é um primeiro ponto. Eu tenho para mim - sempre tenho feito isso – que preciso estar onde as vozes dos invisíveis gritam e nós não escutamos; tenho que estar nesses locais. Porque os gritos são reais; somos nós que não estamos escutando. As dores são reais; somos nós que não estamos sentindo. E essas pessoas, elas são absolutamente reais. Somos nós que as invisibilizamos.
Então, essa é a história; é nessa história que eu tento atuar. Então, não é só estar numa sala quando as coisas acontecem, mas é olhar, tentar enxergar quais são as reações, porque que a reação é, assim, o que está por trás de uma decisão. Então, este é um pouco o meu percurso.
Plurale – Ontem fui ver o concerto do qual você participou, na Igreja Matriz de Paraty, com o maestro João Carlos Martins e a Orquestra Sinfônica da cidade.
Jamil Chade – Foi uma maravilha, né? Que bom que viu. E o maestro estava emocionado. Ele, que já tocou em todos os lugares, estava emocionado aqui.
Plurale – Eram músicos de Paraty que estavam tocando.
Jamil Chade - Exatamente! Pois é: ele, que tocou 30 vezes no Carnegie Hall, etc., etc., estava emocionado com a Igreja de Paraty!
Plurale – Quando saí da Igreja, parei no Auditório da Praça para assistir o final da mesa “Não Existe Mais Lá”, com Atef Abu Said, Ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina, e a gaúcha Julia Dantas. Atef Abu Said falava do apagamento de Gaza de modo muito pungente. Você olhava para o homem e ele era o retrato da dor.
Jamil Chade - Exatamente.
Plurale - Você passa por dores assim o tempo todo?
Jamil Chade - Eu tento fazer o que a Márcia (Tiburi) estava colocando, na mesa sobre o livro dela (que Jamil Chade mediou, na Casa Record): eu trato desse despertar. Se eu conseguir que uma matéria, que um artigo desperte uma pessoa que seja, e que essa uma pessoa fale: - Puxa, isso insuportável, né?, ou “Eu preciso fazer algo por isso”, ou “Eu preciso pensar nisso”, o artigo já valeu. Não é se ele vai ter 5 milhões de acessos; não é! É se ele despertou alguém. Então essa é a tentativa que eu faço.
Plurale – Mas a pessoa tem que ter uma sensibilidade diferente. É difícil para a gente sentir, quer dizer, o que você sente; não é que eu queira sentir o que você sente, mas queria me solidarizar nesse sentido e compreender um pouco mais.
Jamil Chade - Sou um homem branco privilegiado, numa família que nunca teve nenhum problema financeiro; não existe o debate da penúria, da dificuldade. E eu acho que eu tenho o dever, se eu estou nessa situação, de atentar para um fato. Em muitas dessas viagens, eu noto uma coisa muito chocante, que é: eu estou naquele mesmo local inóspito, mas porque eu tenho no bolso dinheiro, cem dólares, o que for, não estou ameaçado de morrer ali! Ou seja, não é só o local: é a condição daquela população! Então, assim; aquele local é inóspito, aquela situação é dramática? É porque aquelas pessoas estão invisibilizadas! E estão abandonadas! Então eu, naquela mesma situação, só porque trouxe dinheiro no bolso e porque tenho um passaporte que me permite circular, não estou ameaçado! Então isso - na minha opinião - é muito revelador dessa situação inaceitável!
Escolhi fazer isso porque acho que cada um de nós precisa ter essa responsabilidade de ajudar nessa que eu chamo de insurreição das consciências. Então o que é essa insurreição? Não é pegar em armas, não é fazer uma trincheira etc. É você convencer um garoto de que aquela visão de mundo que ele tem talvez não seja convivente com o que o mundo realmente é. Então vamos trazer um pouco o mundo, para mostrar que as coisas são um pouco mais complexas, né?
Plurale – Pode nos dar um exemplo de como podemos trazer o mundo real para as consciências?
Jamil Chade - Então, por exemplo, naquela vez, com aquele deputado que foi pra Ucrânia, eu também escrevi para ele. Um deputado, um vereador de São Paulo – não, foi um deputado estadual que foi pra Ucrânia. E aí deu uma polêmica, porque ele vazou os áudios dele. E ele falando que as refugiadas ucranianas eram todas mulheres lindas, que estavam dispostas a fazer negócios com ele, né? É, foi chocante. Nessa época eu escrevi uma carta para ele. Porque assim, ou falava barbaridades, eu falava: “Não, calma aí! Não adianta falar barbaridades; eles são os bárbaros!” Vamos fazer outra coisa? Vamos pegar na mão deles e vamos trazê-los para dentro de um campo de refugiados? Pra mostrar que não há sequer a possibilidade de falar o que ele estava pensando, que era “vou pegar umas meninas aqui”, né? Que isso não passa pela cabeça de ninguém, porque tá todo mundo tentando sobreviver, não é? E fugindo de guerra!
Então, escrevo nesse sentido, de você tentar criar algum tipo de consciência de que: primeiro, como Milton Santos fala da cidadania inconclusa – né, no caso do Brasil -, eu acho que existe a humanidade inconclusa, né? Porque tem grupos inteiros no mundo que não fazem parte do conceito de humanidade. Então tá: como é que a gente faz para que aqueles que são humanos reconheçam que os não humanos precisam ter direito a ter direitos? Não é? Então é isso, essa mudança. Agora, o meu papel é minúsculo. Mas eu fico pensando: se todos fizerem esse papel minúsculo, será que não dá para mudar?
Plurale – Pois é, como é que você tem a sensação, a temperatura das situações: você viaja para esses lugares todos e vai presenciando esses horrores. E como é que você sente, e para onde você acha que vai esse movimento de desconectar tudo, de apagar as pessoas, de apagar a memória?
Jamil Chade – Acho que hoje a situação é uma encruzilhada. Porque, pelo que a Márcia (Tiburi) disse, o não é que o modelo vai se esgotar ou que corre o risco de falir; não, ele já faliu. Ele já faliu. Então, é o momento de uma encruzilhada. Nunca houve um número tão grande de refugiados como existe hoje no mundo. E nunca houve um freio, nos últimos 70 anos, ao avanço dos direitos, como existe hoje. Então a gente precisa ter primeiro a consciência de que esse momento que a gente vive é um momento de encruzilhada. E que ele pode ir para dois caminhos: um é de um desastre - e esse desastre pode ser ainda maior do que a pandemia. E o outro é tentar a possibilidade de que essas utopias possam ser recriadas.
As utopias que existiam no passado apontavam que talvez a nossa geração seria aquela que iria viver num outro mundo. Em muitos aspectos, o século 20 fez uma revolução total. Aqui vão dois números que eu sempre uso: em 1900, de cada 10 pessoas, sete eram analfabetas; hoje, de cada 10, só duas são analfabetas. Então, isso é espetacular como avanço. Um outro avanço espetacular: em 1900, a expectativa de vida no mundo era de 35 anos de idade; em 2015, era de 71. Então, houve um avanço espetacular agora porque foi criado um antibiótico? Não, e sim porque houve uma transformação dos direitos. Não adianta você criar um antibiótico que só salva um grupo de pessoas. O antibiótico só chegou a um número bilionário de pessoas porque houve uma conscientização de que ter direito a ter direitos foi a história do século XX. Só que esse freio foi criado - e este é o drama da nossa geração. E cabe à nossa geração, primeiro: identificar que isso foi criado e denunciar esse freio. E dois: fazer com que seja possível construir uma massa de alternativas para que esse processo de avanços possa continuar.
Plurale - Pois é, temos exemplos, como O Livro de San Michelle, do Dr. Axel Munthe, que reli recentemente. E o pensamento daquele médico, em relação à humanidade, era um pensamento altruísta. E também do Dr. Sabin, que cedeu gratuitamente os direitos da vacina da poliomielite.
Jamil Chade – Eu diria mais do que altruísta. Pode até ser considerado como egoísta, pelo seguinte: a pandemia, por exemplo. A vacina é um tapa na cara dessa questão do isolamento etc. Não, não falo do confinamento. Não, não é disso que estou falando, mas vou explicar. Vamos imaginar um grupo político que esteja no poder – um grupo violento etc., que difunde o ódio, neofascista. Esse grupo, para que a avó dele, do governante, continue viva e para que a sogra dele continue viva, não vai poder vacinar só o seu grupo, porque aquele vírus pode mutar na população não vacinada, pode voltar e matar a sua própria família. E aí ele é obrigado a vacinar os seus inimigos, para que ele sobreviva. Entende? A transformação, então, até de forma egoísta, indica que você precisa salvar aquela outra população, não é? Então: é claro que é uma posição altruísta, mas uma posição altruísta para sobreviver – e sobreviver melhor.
Tem uma experiência na Suécia, que acho espetacular: as prisões na Suécia estão fechando. Não tem preso. E tem também uma história. Enfim, a história de uma construção longuíssima, que durou de 50 a 60 anos. Então, primeiro porque tem as penas alternativas, tem este aspecto. Mas tem um outro um aspecto, que é: o preso, depois de passar cinco, seis, sete, anos na prisão, ele volta para a sociedade, como deveria teoricamente acontecer, para se reinserir na sociedade, reeducar, não é? Os nossos presos não voltam reeducados. Eles passam por uma universidade do crime. Agora, o que é que muda, nessa constatação dos suecos? A dignidade que aquele preso recebe na prisão. Aquela dignidade dele – e aí, a gente ouve aqui no Brasil: “não, bandido tem que sofrer mesmo na prisão, tem não sei o quê,” e tal. Isso é burro, porque isso vai perpetuar que aquela pessoa queira se manter no crime, porque ela vai ser sempre humilhada pelo sistema. Então ela volta ainda com mais ódio. E essa experiência da Suécia mostrou que, quanto melhor você tratar o preso, maior a chance de que, no retorno dele à sociedade, não volte a cometer crimes.
Plurale - Se ele for humilhado seguidamente, se forem impostos a ele horrores dentro da prisão e se tolerarem o crime dentro da prisão, ele não tem a saída nunca mais.
Jamil Chade – Então, eu fui visitar uma prisão lá; lembro da pergunta e da resposta que me deram, eu desconectado de tudo. Era uma cela. Fui visitar uma cela e tinha uma cortina. Eu falei: puxa, tem até cortina, né? E o rapaz que estava me fazendo o tour respondeu: - Uai, eles precisam dormir! Uma coisa ridiculamente básica. Quanto custa, né, uma cortina? Nada. Então, de fato, é por isso que eu digo que não é só o altruísmo, dizer “Olha como eu sou altruísta”. Não, a minha vida, a dos meus filhos e dos meus netos será melhor, quanto maior for o número de pessoas incluídas no conceito de humanidade.
Plurale – É o Dr. Sabin. Ele abriu a patente da vacina da pólio pro mudo inteiro.
Jamil Chade – Exatamente.
Plurale – É um ideal de preocupação com a humanidade.
Jamil Chade – Exatamente.
Plurale – E aí, como você sente tudo isso no seu trabalho? Você está lá todo dia. Muda alguma coisa? Onde aparece esperança?
Jamil Chade – Vejo muita esperança nos jovens, nos adolescentes. É que eu tenho tido bastante contato; eles vêm com uma cabeça muito diferente da nossa. E com conceitos que eu, pelo menos, nunca tinha pensado em colocar na escola, naquela idade. É principalmente em termos de meio ambiente. São muito conscientes. E a minha esperança é de que eles, quando tenham acesso financeiro na vida adulta, transformem esse consumo. E o consumo consciente, então; aquele dólar ou aquele euro que ele tem é que vai comprar não só um produto, mas também um estilo de vida. Então eu não vou comprar este produto, porque este produto significa isso, isso e isso. Claro, é uma esperança que eu tenho. Vamos ver se isso de fato se concretiza, mas eu vejo essa geração assim. Por que a Greta (Thunberg) incomoda tanto o Bolsonaro? Porque ele sabe que, junto com ela, vêm milhões de pessoas. Milhões de garotos, agora crianças ainda, que vão chegar diferentes num sistema político-econômico. Aí eles não sobrevivem. Aí eles não vão sobreviver, se toda essa massa chegar diferente. Então, destruir a credibilidade dela é fundamental para o projeto deles; é fundamental.
Plurale – É um projeto internacional.
Jamil Chade – Exatamente.
Plurale – Eu também tenho dificuldade de entender como é que essa extrema direita tem avançado tanto, depois de tantas conquistas. Por exemplo, o que vem acontecendo na Espanha?
Jamil Chade – Está acontecendo porque, primeiro, eles sabem. E no caso europeu, isso tem uma relação muito grande com a crise econômica de 2008/2009. Ali, o Estado e os partidos tradicionais traíram a população, porque, para salvar os bancos, naquela crise financeira, foram cortadas aposentadorias, ajudas sociais, centros comunitários fecharam, tudo isso porque tinham que salvar os bancos. E uma geração inteira, ali, de repente descobriu que o Estado desmanchou o estado de bem-estar social. Ou desmanchou ou foi muito reduzido. E essas pessoas ficaram não só desamparadas financeiramente, mas olhando para aqueles políticos tradicionais, inclusive de esquerda - no caso, por exemplo, até da Hungria, era um partido de esquerda, que mentiu para a população.
Plurale - Orban, de esquerda?
Jamil Chade – Não, Orban não, mas quem mentiu sobre as medidas para salvar bancos etc., foi a esquerda. Porque, claro, era a esquerda dentro do sistema capitalista, né? Dentro da União Europeia, que teve um compromisso europeu de salvar os bancos, né? Em vários outros lugares ali da Europa, a esquerda traiu a população. E a direita tradicional também, mas aí você pode falar que ficaram desesperados pra sair em resgate dos bancos etc. Mas o que acontece, fundamentalmente, é que alguma população que ficou marginalizada, ou ainda que foi mais atingida por tudo isso, olhou e falou: - Esses caras não me representam! Esses partidos tradicionais não me representam! E enquanto eles falavam isso, veio um grupo que disse: - Tamo junto. Tamo junto! Nós vamos voltar ao que você era antes. Nós não somos nem políticos! Nós somos apolíticos! Nós queremos a nossa soberania de volta! Nós queremos a nossa bandeira! A nossa religião, a nossa fé, a nossa família! Foi perfeito para essa massa de pessoas desiludidas. Foi perfeito; foi um encaixe perfeito. E essa migração aconteceu; ela é real. E ela tem data. Na Europa, ela tem uma data muito específica desse avanço da extrema direita – ou seja, o período da crise 2008/2009.
Plurale - Eu tenho lá um grupo de amigos que são independentistas. Sempre me atrapalho ao dizer esta palavra (risos).
Jamil Chade - O independentismo catalão sempre existiu, né? Mas, na crise econômica, ele ganha uma força. Em 2008 ele ganha qual força? A força de dizer: - Calma aí; nós temos que proteger os nossos, porque é esse estado espanhol que nos tira tudo. Agora nem aposentadoria temos? Agora vão destruir a família? – explica. – O independentismo catalão, esse pessoal eu conheço, mas eles não querem a situação atual. Não sei, a gente sabe que não, mas não conseguem avançar.
Plurale – Para fechar, queremos te perguntar sobre seus dois livros mais recentes: “Ao Brasil, com amor”, que reúne as cartas trocadas com Juliana Monteiro durante a pandemia, e “O indomável: João Carlos Martins entre som e silêncio”, a biografia do maestro João Carlos Martins.
Jamil Chade – Com a Juliana foi o seguinte: a gente estava no meio da pandemia e conversava muito. E, nessas conversas, a gente percebeu que estava, no fundo, trocando cartas, né? Às vezes menores, mas eram cartas o que a gente estava trocando. E o que eu propus pra ela foi fazermos essa reflexão de uma forma organizada, no sentido de “vamos trocar cartas de fato”. Ela mora em Roma. Na época, não era uma escrita combinada; ela mandava uma carta, eu respondia. Depois a gente se despedia e ela me escrevia de novo, tudo natural. Aliás, a Juliana acabou de lançar um livro, esta semana. É um romance, “Nada lá fora e aqui dentro”, que está espetacular.
No caso do João, foi ele que manifestou interesse em contar sua história e propôs para a editora. E ele propôs que entrassem em contato comigo, para saber se eu tinha interesse em escrever. Eu falei que sim, com a condição de que eu pudesse contar a história toda. Então, tem um capítulo do livro que fala de todos os problemas reais, que envolveram lavagem de dinheiro da campanha do Paulo Maluf, e do papel dele na lavagem desse dinheiro. Então, isso não tinha como: eu, que passo e passei anos na Suíça escrevendo sobre lavagem e crimes financeiros, não poderia escrever simplesmente uma biografia de alguém que, publicamente, é conhecido também. Claro, isso é uma parte de uma vida de 84 anos que, obviamente, não se pode resumir a este fato; mas sem mencioná-lo, eu também não poderia fazer a biografia. Então falei com ele. Minha pergunta inicial foi: - Você quer contar só uma história particular da sua vida? Porque se for isso, não quero escrever. Eu quero a biografia completa – disse. – E ele topou. Acho que foi muito corajoso, porque quando leu – e eu sei que não foi uma leitura muito agradável – ele topou. Isso foi muito corajoso, de partida. Aliás, este é o único capítulo do livro que não tem música. Em cada capítulo tem um QRCode que você pode ler no seu celular e ouvir a música daquele capítulo. Mas no capítulo específico que fala de todas as questões mais espinhosas, e que se chama O Silêncio, não tem nenhuma música, porque não dá – conclui.
O indomável: João Carlos Martins entre som e silêncio
“O indomável” traz à tona um João Carlos Martins acima de tudo humano, com triunfos e glórias, mas também sombras e falhas, compondo uma obra que, como as interpretações do pianista e maestro, ficará para a eternidade.
João Carlos Martins é considerado um dos maiores pianistas intérpretes de Johann Sebastian Bach, com quem divide, além do primeiro nome, um amor profundo, inquestionável e autêntico pela música. Nesta biografia, o jornalista Jamil Chade expõe suas facetas mais públicas e seus segredos: pianista prodígio, músico silenciado pelo próprio corpo, personagem com erros e acertos, reinvenção ambulante, maestro indomável.
Da infância debruçada sobre o piano, sob o olhar atento do pai obcecado pelo sucesso do filho e disposto a recorrer a métodos questionáveis para isso, a juventude como uma promessa realizada de talento e fama e a consagração interrompida em seu auge pela gradual atrofia nas mãos, João reinventou o conceito de sobrevivência a cada silêncio forçado a suportar. Mesmo quando esteve afastado dos palcos, como no curto período em que foi empresário esportivo e durante sua passagem breve e polêmica pela política, a esperança de que a música retornasse para ele o impediu de ficar à deriva.
Muitas sessões de fisioterapia o levaram de volta aos palcos, mas o agravamento de lesões neurológicas, acidentes e um episódio de violência forçaram a interrupção na carreira de pianista, dessa vez de forma definitiva. Mas suas mãos indomáveis não deixaram de ousar trazer Bach à vida, agora como maestro. Muito mais que um exemplo de superação e perseverança, no entanto, o que se destaca em sua trajetória é o talento e a profunda dedicação à música como ferramenta transformadora de vidas.