POR MAURETTE BRANDT, ESPECIAL PARA PLURALE
Foto da Flip/ Divulgação
Estou banhada em lágrimas como alguém que perdeu um parente, ao receber, por minha querida amiga e editora Sônia Araripe, do falecimento de Dona Diva Guimarães, aos 85 anos, a brava professora que fez chorar o povo inteiro que estava na Tenda do Telão, em Paraty, numa mesa gratuita da Flip - Festa Literária Internacional de Paraty.
A mesa “A pele que habito” reuniu, no dia 28 de julho de 2017, o ator e escritor Lázaro Ramos e a experiente jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques, para discutir identidades e relações de cor nos países lusófonos.
Eis que Dona Diva pede a palavra e nos conta que, no colégio de freiras onde estudava, ouviu uma infame "historinha" associada à religião.
"A freira nos disse que Deus, do alto, falou a uma multidão que estava diante do mar e disse que aqueles que fossem mais rápidos seriam "purificados" pela água - disse Diva. "Então os "brancos", que eram "mais ágeis", correram na frente e mergulharam. - E os pretos, "que eram preguiçosos", só conseguiram molhar "as mãos e os pés", que ficaram "brancos" - continuou Dona Diva.
De repente, ouvir aquilo me encheu de agulhas por dentro. Chorando, como praticamente todos os que ali estavam, me lembrei de ter ouvido, em criança, a mesma história, contada por algum parente, sei lá. Mas, naquele momento, é que me dei conta da dimensão da crueldade embutida naquela narrativa: Dona Diva e outras crianças pretas da instituição estavam sendo humilhadas e praticamente "condenadas" por serem pretas!
A simples lembraça de ter ouvido aquela história incendiou meu estômago.
De microfone na mão, Dona Diva protagonizou uma das falas mais importantes da Flip. Em que pesassem as insistentes ordens da organização para cortar o som dela, o responsável pelo som - o valoroso Pedro Coelho, um grande amigo que fiz na jornada flipiano - não obedeceu.
E o milagre se multiplicou.
- Como que eu ia cortar o som naquele momento? Impossível! -, disse-me depois o Pedro, que salvou corajosamente aquele momento histórico.
Caminhei na direção de Dona Diva, aos prantos, e consegui abraçá-la. No palco, e também chorando muito, Lázaro Ramos dizia: - Ah, Dona Diva! Não faz isso com a gente não!
O ator foi buscá-la na plateia e a levou para o palco, abraçada e festejada. Lázaro deu a ela seu livro autografado, sem soltá-la do abraço forte e sem segurar o choro.
Ontem (12 de janeiro de 2025), Lázaro Ramos postou uma homenagem para Dona Diva no seu instagram. "Obrigado, Dona Diva Guimarães por todos os ensinamentos que a senhora me passou em cada encontro. Sei que você estará em um bom lugar e em paz."
Diva nasceu em Serra Morena, no interior do Paraná, era filha de uma lavadeira e neta de escravizados. Alfabetizadora e professora de Educação Física, lecionou ao longo de 40 anos. Também jogou basquete e foi velocista. Entre seus autores favoritos estavam Conceição Evaristo e Jorge Amado.
Foto do Instagram de Lázaro Ramos.
Eu, minha amiga Flávia Roessler e todos os que lá estavam, recebemos o sacramento da bondade e da coragem daquela mulher, que nos salvou da vergonha e da doença chamada racismo.
Dona Diva, eternizada, viralizou na Internet. Sua fala chegou a mais de 17 milhões de visualizações no Facebook da Flip. Recomendo a todos que ouçam aqui na Videoteca Plurale a sua fala profunda e histórica.
A professora foi convidada por tantos outros eventos. Um ano após a Flip, em 2018, a jornalista Sônia Araripe, Editora de Plurale, esteve com ela na Conferência Ethos, em São Paulo e também se emocionou muito com sua fala. Entregou exemplar de Plurale e a abraçou também.
Foto de Plurale/ Arquivo.
Estou arrasada com sua partida, mas serei eternamente grata por compartilhar aquele momento e por tudo que ela me ensinou naquele dia, naquela hora e para sempre
Que Dona Diva, gloriosa, brilhe inteiramente em seu caminho de luz e de amor, e que seja recebida, onde quer que esteja, com todas as honras que merece!