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Casos e Causos

Como mulheres e um bicho-preguiça mudaram tudo

O movimento que, pela arte urbana, revitaliza espaços públicos e luta pela preservação ambiental de Botafogo (Zona Sul do Rio de Janeiro).

TEXTO POR BEATRIZ WAEHNELDT

ESPECIAL PARA PLURALE

FOTOS DA AMIGOS DA PRAÇA RADIAL SUL


Leila Moreirão (esquerda) e Silvana Câmara (direita) com dois postes pintados em Botafogo

Desde a pandemia, em 2020, a artista plástica Leila Moreirão pinta os postes de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e transforma o bairro em uma galeria urbana. A iniciativa começou como um passatempo e se tornou um meio de conscientização do trabalho de Silvana Câmara, mediadora e também artista plástica, responsável pela revitalização da Praça Radial Sul e pelo movimento de preservação do Maciço da Preguiça. As duas mulheres já conquistaram o apoio de moradores e da subprefeitura e continuam em busca de melhorar a comunidade.

A história de transformação de Botafogo ganhou um novo capítulo quando Leila foi convidada por sua síndica a criar um mural para o parquinho do prédio em que mora, na Rua Assunção. Depois de se inspirar em alguns postes que eram pintados em Minas Gerais, a síndica pediu para a artista dar cor aos que ficam em frente ao prédio delas na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Inquieta com o isolamento e sem nem pensar em pedir autorização da prefeitura, Leila começou um movimento que inspiraria muita gente. “Eu tinha ideias sobre natureza e alegria. Não queria ficar em casa”, relembra. Ela ainda conta que a sua arte não tem uma inspiração exata. “Eu chego lá na frente do poste e acontece, não fico planejando”.

A ousadia chamou a atenção do subprefeito de Botafogo na época, e Flávio Valle, que atualmente é vereador pelo Partido Social Democrático (PSD), a convidou para uma conversa uma semana depois. No início, Leila ficou receosa em fazer contato, mas com o tempo e a animação do político, ela aceitou o convite. Na reunião, recebeu autorização para prosseguir o trabalho e uma carta que a autorizava a pintar “os postes que quisesse” na Zona Sul. “Tivemos que formalizar essa autorização para ela seguir com os postes”, explica Flávio.

As pinturas da artista plástica trouxeram uma nova vida à paisagem urbana. De acordo com Flávio, elas vão além da estética e criam uma conexão direta entre os moradores e o ambiente e reforçam o sentimento de pertencimento. “Nenhum governante deseja postes em sua cidade, mas é uma realidade. A gente encontrou ali uma possibilidade de dar mais vida, mais cor e identidade para o bairro.”

Depois de um ano de pinturas, apenas uma única pessoa demonstrou descontentamento com a intervenção artística. Foi aí que Leila adquiriu, com a subprefeitura, uma carteirinha de licença vitalícia que legitima as intervenções artísticas no bairro. “Foi quando eu fiz aquele cachorrinho. Aquele homem foi o único em mil que veio criar problemas”, exaspera-se.

A artista conta que muitas pessoas apareceram para ver os postes e dar parabéns, inclusive ex-alunos de artes de muitos anos atrás. Quando começa a pintar, Leila esquece do entorno, mas muitas pessoas aparecem para conversar e até para contar problemas de família, e isto faz com que suas criações mudem de rumo. “Eu ouço, mas continuo pintando”, completa.

Artista colaboradora, Maria Helena Fonseca teve sua experiência marcada por uma grande interação com a comunidade. Assim como Leila, ela encontrou nas pinturas uma oportunidade de dialogar sobre o meio ambiente com gente de todas as idades, especialmente as crianças, que até participaram de suas criações. “São pequenos gestos que fazem as pessoas se conscientizarem”, ressalta.

Mas o trabalho de Leila não ficou restrito aos postes. Recentemente, ela uniu forças com outra artista plástica, Silvana Câmara, mediadora comunitária voluntária, atuante, desde 2012, na revitalização da Praça Radial Sul em Botafogo. Mãe de dois filhos, ela iniciou o trabalho no local com amigas, após uma reunião sobre a segurança do bairro no Colégio Santo Inácio, que discutiu sobre quais caminhos tomar para tornar mais segura a localidade. A Praça Radial Sul era um ambiente marcado por problemas com drogas e falta de manutenção. “Queríamos um espaço mais seguro para nossas crianças e famílias".

Na ocasião o proprietário da floricultura da Praça, Seu Chagas precisava do apoio dos moradores para reflorestá-la e ocupa-la com atividades. A Silvana junto com um coletivo de mães juntou-se a ele, e em pouco tempo o lugar ganhou vida, surgiram as contações de histórias, festas juninas, festas de Natal, até apresentações de orquestras mirins, do coral dos Amigos do Colégio Santo Inácio e muitas outras. A praça tornou-se um ponto de encontro e um espaço de pertencimento para os moradores, que passaram a chamar o coletivo responsável pelo espaço de Amigos da Praça. “Foi uma época de ouro entre 2016 e 2020”, relembra Silvana.


Amigos da Praça com biblioteca ao fundo

A viúva do Seu Chagas, Dorvania Efigênia Santana conta que já vivia com ele há 12 anos, mas só foi perceber o carinho da comunidade e a importância do trabalho dele na praça quando ele adoeceu e, mais tarde, veio a falecer. Também lembra da homenagem que a comunidade fez para ele após o período no hospital e que os dois ficaram muito felizes e mais fortes, pois não faziam ideia de como ele era querido no bairro. “Foi muito emocionante ver o respeito e o carinho que as pessoas tinham por ele, algo que fortaleceu ainda mais o legado que ele deixou", comove-se.

A artista plástica e produtora cultural Ana Luisa Mello faz parte do coletivo e trouxe sua expertise em design para contribuir com a identidade visual do projeto, ao criar logos que ajudam a fortalecer o Amigos da Praça Radial Sul. Ela conta que a contribuição foi no visual para ajudar na divulgação do trabalho e vender o grupo para as pessoas. “Fiz várias opções e escolhemos a que seria melhor".


Logo dos Amigos da Praça Radial Sul por Ana Luisa Mello

Nas conversas com a Prefeitura em busca de melhorias, foram ouvidos por alguns representantes do poder público, entre eles, Flávio Valle, que apoiou a revitalização da praça, diz que, para a prefeitura, é impossível cuidar de todas as praças constantemente, e os moradores, que conhecem as necessidades locais melhor do que qualquer agente, têm um papel fundamental na zeladoria urbana. “É um direito de a pessoa ter acesso a uma praça, à saúde, à educação, mas é também uma responsabilidade coletiva", defende.

Com mais de 20 anos na área de Botafogo, Josefa Bezerra Alves, mais conhecida como “Finha”, é conhecida pelo trabalho e ações solidárias, especialmente em períodos festivos, como o fim do ano, quando distribui quentinhas para pessoas em situação de rua, e o Dia das Crianças, época em que realiza festas por conta própria. Ela revela que participa uma vez por semana em atividades solidárias, cuida dos cachorros, organiza doações de roupas e alimentos. “Não penso em dinheiro quando estou ajudando. A praça está super bem cuidada, os postes bonitos, o trabalho que eles fizeram é excelente”, destaca.

Durante a pandemia o grupo se mobilizou para diversas atividades solidárias, uma delas era de arrecadação de alimentos, ajudando diversos famílias e voluntárias como Finha a realizar seu trabalho.

Mas o trabalho de Silvana, Leila e Ana Luisa Mello não parou por aí. Juntas, passaram a atuar em prol da preservação do Maciço da Preguiça, área verde essencial para o equilíbrio ambiental de Botafogo. Com o avanço das imobiliárias nas áreas públicas durante a pandemia, várias espécies de animais começaram a sair da mata fechada e aparecer. Assim, surgiu o nome da iniciativa em prol do Maciço da Preguiça, área verde que se conecta com o Mirante do Pedrão e a Floresta da Tijuca. "Nós, ligados à preservação natural, começamos a ouvir barulhos de construção, e a principal espécie que apareceu foi a preguiça, daí a ideia de criar uma marca para divulgar nossas ações", relembra Ana Luisa Mello.


Logo do Parque Ambiental Maciço da Preguiça por Ana Luisa Mello

A pintura nos postes trouxe muita visibilidade para a luta. Com ela, alguns mutirões de pintura e reflorestamento da área foram organizados, com o apoio de figuras como Sávio Teixeira, do programa EcoFlora, que já realizava reflorestamento no Pão de Açúcar. E isso chamou a atenção da vereadora Tainá de Paula do Partido dos Trabalhadores (PT), que incluiu o Maciço em um plano de preservação florestal com o Pedrão e a Floresta da Tijuca (Lei Nº 8.162, de 7 de novembro de 2023).


Mutirão pintando os muros .

No início da pandemia, Fabrício Farias Siqueira, morador da região e trilheiro, observou a crescente especulação imobiliária que ameaça as áreas remanescentes de vegetação do Maciço. A ideia de transformar o local em uma área de proteção ambiental sempre esteve em sua mente e quando viu uma reportagem sobre o projeto de criação do parque, o amante da natureza se conectou com o Instituto Ecoflora e passou a participar dos mutirões de plantio. Ele alerta, no entanto, para a necessidade de as novas gerações serem mais conscientes, pois, apesar de serem a chave para o futuro, são a minoria participante. Fabrício também enfatiza a importância de dar mais visibilidade ao parque e à regulamentação do projeto de lei, que ainda não foi implementado de forma funcional. "Nossas ações em grupo poderiam transformar o bairro e até inspirar outras regiões a seguirem o mesmo caminho".

A pintura dos postes, a revitalização da Praça e a preservação do Maciço caminham de mãos dadas, com uma visão de futuro: criar um ambiente de educação ambiental, no qual escolas possam fazer plantios e aprender sobre o bioma local. O grupo tem planos de inaugurar um ateliê de arte ao lado do quiosque de Seu Chagas e um espaço ecológico na área do Maciço da Preguiça de acesso público, mas com segurança e controle para que os visitantes não degradem o meio ambiente. "Queremos que seja um espaço parecido com o Jardim Botânico, mas com uma identidade local", acrescenta Silvana.

Jornalista do O Globo Zona Sul, Priscilla Litwak destaca como o trabalho de mulheres como Silvana e Leila é importante para a construção de uma narrativa de valorização comunitária e preservação ambiental que transcende a estética e se torna uma força de resistência contra a deterioração e descaso com o ambiente urbano. O envolvimento de artistas locais em projetos comunitários, para ela, é uma resposta sócio-cultural aos desafios da cidade que resulta em uma rede de apoio e engajamento cívico transformador. Priscilla lançará o livro infantil “Preguiça, o bicho que só queria viver em paz” com ilustrações de Leila, que retrata a luta dos moradores pela preservação do bairro. "Será um marco importante para documentar o esforço de quem quer ver uma cidade mais verde e conectada com suas raízes", completa.

Com mais de 60 postes pintados e uma trajetória de envolvimento comunitário, a iniciativa das artistas plásticas transformou não apenas o ambiente físico, mas também a forma como os moradores de Botafogo se relacionam com o bairro e entre eles. Apesar dos desafios, como a falta de infraestrutura, financiamento e mão de obra para a continuidade dos projetos, elas estão determinadas a expandir as ações e criar um ateliê urbano cooperativo na Praça, junto à biblioteca comunitária que lá existe. "O olhar de cada um pode fazer tudo mudar", finaliza Silvana, que define o projeto como: “a arte é uma forma de cidadania ativa”.







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