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O tsunami silencioso da saúde social

POR GLAUCIMAR PETICOV, COLUNISTA DE PLURALE (*)

Vivemos um tempo de tensões difusas e desconexões profundas. Os abalos sociais, por vezes, não são percebidos com a gravidade que merecem, até que a onda nos atinja com força. A metáfora do tsunami, tão comum no contexto ambiental, revela-se dolorosamente adequada para descrever a crise silenciosa e crescente da saúde social.
É preciso soar o alarme. Profissionais, líderes e instituições precisam aprender a reconhecer os sinais do recuo do mar, e não os ignorar.
Sabemos que, antes do impacto devastador de um tsunami, vem o recuo das águas. Para quem observa sem preparo, pode até parecer bonito: um fenômeno raro, quase encantador. Mas quem conhece os ciclos naturais sabe que aquele recuo é o prenúncio da destruição.


Na saúde social, o recuo é igualmente sutil e perigoso. Ele se manifesta no aumento da solidão e do isolamento, na desconfiança generalizada nas instituições, na intolerância travestida de opinião, no desinteresse cívico, na indiferença diante do sofrimento alheio.
São sinais claros de que o tecido social está se esgarçando por dentro, enquanto insistimos em fingir normalidade.
A pergunta não é se a onda virá, mas quando, com quanta força, e como nós, pessoas e organizações estamos nos preparando.
Ignoramos o recuo, encantados pelo mar calmo da produtividade individual? Sentimos os primeiros tremores, mas fingimos que é apenas mais um desafio passageiro? Ou já estamos construindo estruturas de cuidado, pertencimento e confiança, antes que a onda nos alcance?


Organizações não operam no vácuo. Operam em comunidades, impactam culturas, moldam relações.
E, infelizmente, quando a onda chega, e ela chega, os impactos da negligência tornam-se inegáveis. A saúde social entra em colapso, não como uma hipótese distante, mas como uma realidade devastadora: crises de saúde mental em larga escala, violência banalizada, polarização destrutiva, o rompimento dos laços de confiança — e, o mais grave, o desaparecimento dos “nós”.
Toda crise social infiltra-se, silenciosamente, nas estruturas mais íntimas da vida cotidiana. E nenhuma delas é mais sensível e mais afetada do que a família.
A desestruturação familiar já não é exceção. É sintoma sistêmico de uma sociedade que valoriza a performance acima da presença, que confunde afeto com produtividade, que transfere a responsabilidade emocional para escolas, redes ou algoritmos.
Nessa nova configuração, o indivíduo torna-se arquipélago, digitalmente conectado, mas emocionalmente desconectado de qualquer senso real de comunidade ou corresponsabilidade.
A consequência é clara: empresas fragilizadas, lideranças sobrecarregadas, ambientes de trabalho emocionalmente desertificados, tentando, tardiamente, compensar aquilo que se perdeu no início da cadeia.


Depois de um tsunami, algumas comunidades se reconstroem. Outras, jamais voltam a ser as mesmas. A pergunta que se impõe é: vamos apenas lidar com os escombros ou vamos prevenir as próximas ondas?
Isso exige coragem para mudar o foco da saúde individual para a saúde relacional, da performance para o pertencimento, da produção para o propósito, da indiferença para a empatia, estruturada em políticas públicas, programas institucionais e práticas cotidianas.
Saúde social não é um tema “soft”. É infraestrutura humana. Sem ela, tudo o mais colapsa.
Antes da próxima onda, ainda é possível inverter a maré com vontade genuína, visão clara e ação coletiva.
Isso significa criar ecossistemas de cuidado e escuta, priorizar o bem-estar coletivo nas decisões políticas e empresariais, incorporar a saúde relacional como métrica de sucesso institucional, educar para o diálogo, a empatia e o senso de pertencimento, desconstruir a lógica da exclusão e construir ambientes de convivência segura.
A saúde social começa onde termina o individualismo e onde nasce o compromisso de um com o outro.
E que não haja dúvidas: não estamos diante de uma metáfora poética. Estamos diante de um alerta sísmico.
A saúde social está em risco. O mar já recuou em muitas partes do mundo, nas comunidades e dentro dos ambientes de trabalho.
Cuidar da saúde social não é luxo, nem retórica suave. É urgência vital.


Trata-se de resgatar o vínculo, a escuta e o afeto. Compreender que sem o “nós”, o indivíduo também adoece.
A hora é agora.
Esperaremos a onda? Ou nos tornaremos os arquitetos da reconstrução antes da destruição?

Glaucimar Peticov é conselheira, mentora e pesquisadora em temas ligados à liderança, inovação social, saúde relacional e transformação humana. Atua na interseção entre propósito, resultado e valores, e é referência no debate sobre liderança 5.0 no Brasil.







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