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O potencial dos biocréditos na bioeconomia e a urgência regulatória no Brasil - Parte I

Artigo da Dra. Rita Maria Scarponi, advogada (*)

Colunista de Plurale

1. Contextualização: Iniciativas Nacionais e Casos Internacionais de Biocréditos

A emergência da crise da biodiversidade impulsiona a busca por ferramentas financeiras que valorizem a natureza. Nesse cenário, os biocréditos surgem como unidades verificáveis de impacto positivo em biodiversidade ou serviços ecossistêmicos, diferenciando-se dos créditos de carbono por focarem na proteção e restauração da natureza. No Brasil, apesar da ausência de uma legislação específica, diversas iniciativas já sinalizam o potencial para um mercado de biocréditos.

Âmbito Nacional

  • Setor Público: A Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA) - Lei Federal nº 14.119, de 13 de janeiro de 2021 - visa remunerar conservacionistas, servindo como um alicerce legal para o reconhecimento do valor da biodiversidade. Embora seja um mecanismo de pagamento direto e não um mercado transacionável de biocréditos, a PNPSA pode atuar como “piloto” para testar metodologias e modelos de governança, preparando o terreno para futuros sistemas de créditos verificáveis.

  • Setor Privado: Empresas e a sociedade civil atuam na vanguarda, desenvolvendo projetos de conservação e restauração que geram benefícios de biodiversidade, muitas vezes como cobenefícios de projetos de carbono (REDD+). A expertise em Monitoramento, Relato e Verificação (MRV) desses projetos é crucial para a credibilidade de um futuro mercado. Iniciativas como o Mercado Livre de Bioativos da Sociobiodiversidade Brasileira (MLBSB) focam na valorização de produtos da floresta e na remuneração de comunidades, demonstrando o potencial de vincular a conservação a benefícios econômicos diretos, apesar dos desafios de escala e quantificação.

Cenário internacional

O mercado de biocréditos está em franca evolução, com o setor voluntário liderando a experimentação:

  • Organizações como a Verra (com seu Nature Framework) e a Plan Vivo Foundation estão desenvolvendo padrões robustos para quantificar e certificar resultados positivos para a natureza, expandindo seus escopos além dos créditos de carbono para incluir a biodiversidade.

  • A CreditNature (Reino Unido) propõe um mercado para “créditos de capital natural” focado em restauração de habitats.

  • A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) com seu padrão para Soluções Baseadas na Natureza (NbS) também serve de base para quantificação de biodiversidade.

  • Um exemplo específico é a valorização dos serviços de polinização, muitas vezes concretizada por meio de mecanismos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Programas como o Environmental Quality Incentives Program (EQIP) e o Conservation Reserve Program (CRP), administrados pelo Serviço de Conservação de Recursos Naturais (NRCS) da USDA - United States Department of Agriculture nos EUA e os eco-schemes (esquemas ecológicos) da Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia incentivam práticas agrícolas que beneficiam polinizadores, reconhecendo seu valor ecossistêmico crucial.

Essas iniciativas, nacionais e globais, sublinham a crescente demanda por soluções baseadas na natureza e a necessidade de padronização e estruturação para um mercado de biocréditos transparente e escalável.

Contudo, movimentos internacionais contrários a agendas ambientais, incluindo a desregulamentação, especialmente advindos da nova administração norte-americana, e o crescimento de movimentos anti-ESG, representam desafios para o financiamento e a cooperação internacional em questões ambientais.

2. Introdução aos Biocréditos

Diante da crescente crise da biodiversidade e da degradação dos ecossistemas, a sociedade busca mecanismos financeiros inovadores para valorizar e conservar a natureza. Nesse contexto, os biocréditos, também conhecidos como créditos de biodiversidade ou créditos de natureza, emergem como uma ferramenta promissora. Eles representam uma unidade verificável de impacto positivo na biodiversidade ou na restauração e conservação de serviços ecossistêmicos.

Diferentemente dos créditos de carbono, focados na redução de gases de efeito estufa (GEEs), os biocréditos quantificam e recompensam a proteção, restauração ou manejo sustentável de ecossistemas e espécies. Sua importância reside em:

  • Financiar a conservação: Atraem capital privado para projetos de biodiversidade que teriam dificuldade em obter financiamento tradicional.

  • Valorizar a natureza: Conferem valor econômico tangível à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos, incentivando sua proteção.

  • Compensar impactos: Oferecem um mecanismo para empresas compensarem impactos residuais na biodiversidade após esforços de mitigação.

Essa nova classe de ativos ambientais sinaliza um futuro promissor para a monetização da natureza e a mitigação dos efeitos da degradação ambiental.

3. O Brasil e a Urgência Regulatória: Lições do Mercado de Carbono

O Brasil, detentor da maior biodiversidade do planeta, possui um potencial estratégico para se tornar um líder global na emissão de biocréditos. No entanto, o avanço desse potencial está intrinsecamente ligado à superação de uma lacuna legislativa crucial: a ausência de um marco legal claro e eficaz para a valorização e transação de biocréditos.

Atualmente, instrumentos legais como a Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), e o chamado Novo Código Florestal (Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000), tangenciam a temática dos serviços ecossistêmicos, mas não regulam especificamente a emissão, verificação, certificação e transação de biocréditos. Essa carência jurídica gera insegurança, dificulta a atração de investimentos e impede a criação de um mercado transparente e escalável, travando o pleno desenvolvimento da bioeconomia nacional.

A recente regulamentação do mercado de carbono no Brasil, por meio da Lei Federal nº 15.042, de 11 de dezembro de 2024 (“Lei do Carbono”), que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), oferece um paradigma e lições valiosas que o setor de biocréditos deve urgentemente incorporar:

  • Segurança Jurídica: A Lei do Carbono buscou definir regras claras para precificação, alocação de licenças e verificação de créditos. Uma clareza similar é imperativa para os biocréditos, fornecendo a base para a confiança dos investidores e a integridade do mercado.

  • Estrutura Regulatória e Governança: O arcabouço da Lei do Carbono aponta para a complexidade de criar um sistema de governança robusto (órgão gestor, registro, regras de compliance, monitoramento e fiscalização). Para os biocréditos, a necessidade de tal estrutura é ainda mais crítica, dado o maior desafio de quantificar a biodiversidade em suas múltiplas facetas.

  • Desafios de Implantação: Mesmo a Lei do Carbono enfrenta desafios em sua implantação. No caso dos biocréditos, esses desafios são exponenciados pela complexidade inerente à medição e verificação dos ganhos de biodiversidade, que exigem metodologias mais sofisticadas e adaptadas às particularidades de cada ecossistema.

A ausência de uma previsão legal efetiva para os biocréditos limita severamente o potencial econômico do Brasil e compromete sua capacidade de gerar mecanismos financeiros inovadores para a conservação de sua riquíssima biodiversidade. O desenvolvimento de um arcabouço legal robusto é, portanto, não apenas uma questão ambiental, mas uma estratégia econômica para capitalizar o vasto patrimônio natural do país, atrair investimentos, cumprir metas de sustentabilidade e posicionar o Brasil como um player fundamental na economia da natureza global.

4. Conclusão

A experiência internacional, embora ainda em fase de amadurecimento, confirma o enorme potencial dos biocréditos como instrumentos para financiar a conservação e restauração da natureza. Para o Brasil, com sua biodiversidade inigualável, a ausência de um marco legal específico para biocréditos representa uma lacuna estratégica a ser preenchida com urgência.

É fundamental que o país avance na criação de uma estrutura legal que garanta a eficácia, transparência e integridade da emissão e transação desses créditos.

Isso permitirá ao Brasil capitalizar seu capital natural, atrair investimentos, cumprir suas metas de sustentabilidade e proteger seu patrimônio biológico para as futuras gerações, além de consolidar sua posição de liderança na bioeconomia global, um tema que, inclusive, ganhará destaque na COP 30 em Belém, pois tratar do meio ambiente demanda uma visão que contemple os aspectos econômicos.

Este é o primeiro artigo sobre o tema, com continuidade nas próximas oportunidades.


Rita Maria Scarponi, advogada especializada em direito societário e administrativo, regulação, mercados financeiro e de capitais e meio ambiente. Integrante de equipe multidisciplinar à concretização de planos e projetos de descarbonização e de desenvolvimento econômico a agentes dos setores público e privado. Pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas - FIPE.







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